terça-feira, 17 de novembro de 2009

Por que temos dificuldade em aceitar mudanças? Parte dois: Os Mecanismos de Defesa


Por Maria de Fátima Fernandes, CRP 06/9226

Outra questão muito importante quando se abordam as razões de as pessoas terem dificuldade em aceitar os processos de mudança e transformação que caracterizam a vida, é o tema dos mecanismos de defesa do ego. Mas o que significa afinal “ego”? De um modo simples, podemos definir o ego como o conjunto de representações que temos a nosso respeito, nosso auto-conceito. Esse conjunto de representações é construído ao longo da nossa vida, pois não nasce pronto, ainda que existam controvérsias sobre quando exatamente o processo de desenvolvimento egóico se inicia. Mas o ego não é apenas uma representação pessoal; ele é aquela parte da nossa personalidade voltada para a adaptação do organismo frente às condições internas e externas. Em outras palavras, o ego está preocupado em manter o equilíbrio entre as suas necessidades interiores, psicológicas e fisiológicas, e as exigências do meio social. É uma instância reguladora, reconciliadora, que busca um consenso entre aquilo que desejamos e a necessidade, também importante, de corresponder a certas normas e valores morais e sociais. O ego está voltado, portanto, para a nossa adaptação. Já os mecanismos de defesa do ego, são operações que visam protegê-lo dessas diferentes pressões, internas ou externas. Os mecanismos de defesa predominantes diferem segundo o tipo de doença considerada, a etapa de desenvolvimento em que se encontra o indivíduo e o grau de elaboração do conflito – isto é, a capacidade da pessoa em lidar ou não com uma determinada situação problemática.

Quando o Ego está consciente das condições em que está inserido, ele consegue se sair bem das situações difíceis, sendo lógico, objetivo e racional, mas quando se desencadeiam circunstâncias para as quais ele não está preparado, e que possam vir a provocar sentimentos de culpa ou ansiedade, o Ego perde as três qualidades citadas. É quando a ansiedade (ou sinal de angústia), de forma inconsciente, ativa uma série de mecanismos de defesa, com o fim de proteger o Ego contra uma dor psíquica iminente.

Há vários mecanismos de defesa, sendo alguns mais eficientes do que outros. Há os que exigem menos gasto de energia para funcionar a contento. Outros são menos satisfatórios para proteger o Ego, mas todos requerem gastos consideráveis de energia psíquica.

As defesas do ego podem dividir-se em:

a)Defesas bem sucedidas, que geram a cessação daquilo que se rejeita

b)Defesas ineficazes, que exigem repetição ou perpetuação do processo de rejeição, a fim de impedir a irrupção dos impulsos rejeitados.Tendem a gerar situações constrangedoras, compulsão à repetição e fadiga.

As defesas patológicas (doentias) – dentre as quais se encontram as neuroses – pertencem à segunda categoria. Quando os impulsos internos não encontram descarga na consciência, por conta das pressões externas, por exemplo, mas permanecem suspensos no inconsciente e ainda aumentam pelo funcionamento continuado das suas fontes físicas, produz-se um estado de tensão, com a possibilidade de irrupção (como, por exemplo, no transtorno de pânico ou no surto psicótico).

Nem sempre, porém, se definem com nitidez as fronteiras entre as duas categorias. Uma defesa bem sucedida pode às vezes atuar de forma doentia (quando excessiva, no caso, por exemplo, de pessoas que trabalham além da conta para esquecer os problemas); por outro lado, certas defesas freqüentemente doentias, são até aceitáveis ou compreensíveis em situações de grande tensão (como quando uma pessoa desata a rir, compulsiva e descontroladamente, num enterro ou velório, frente à dolorosa morte de um parente; ou quando, por exemplo, a pessoa nega que tem uma doença grave e continua a viver como se estivesse bem).

A seguir, vai uma lista dos principais mecanismos de defesa, suas características, vantagens e desvantagens:

Repressão: É a operação psíquica que pretende fazer desaparecer, da consciência, impulsos ameaçadores, sentimentos, desejos, ou seja, conteúdos desagradáveis ou inoportunos. A repressão ocorre quando tentamos desviar da mente consciente uma idéia, afeto, etc. (Ex: alguém que é religioso(a) ou casado(a) e que sente um desejo sexual por outra pessoa e reprime esse desejo; ou alguém que manifesta a vontade de agredir alguém, e reprime tal iniciativa, tentando esquecer seus sentimentos ou apagá-los da mente. Quando se diz que uma pessoa é “reprimida” estamos fazendo referência a uma pessoa que tolhe suas vontades, que impede a si mesma de ser feliz, de expressar seus desejos. A repressão é um mecanismo comum, mas pouco eficaz, pois o que está reprimido tende sempre a se tornar consciente de novo, nunca vai embora totalmente.

Sublimação: É o mais eficaz dos mecanismos de defesa, na medida em que canaliza os impulsos do indivíduo para uma postura socialmente útil e aceitável (realizações científicas, religiosas, artísticas, etc.). As defesas bem sucedidas podem colocar-se sob o título de sublimação, expressão que não designa necessariamente um mecanismo específico. Qualquer defesa pode ser considerada sublimação se for utilizada para fins socialmente úteis. O fator comum está em que, sob a influência do ego, a finalidade ou o objeto (ou um e outro) se transforma sem bloquear a descarga adequada. Na infância, a busca pela sublimação é facilitada pelas identificações com as pessoas adultas (a mãe fazendo as atividades de casa, o pai trabalhando, a família orando, etc.). Nas brincadeiras e nos jogos, a criança também pode sublimar aos poucos seus impulsos primitivos de agressividade e sexualidade, atenuando-os com o tempo. As indústrias de videogame sabem disso e apelam para esse aspecto da mente infantil. A criança muito violenta é quase sempre um sinal de incapacidade da sublimação, embora seja comum nessa idade as manifestações desse tipo (ex: brincadeiras de “briga” entre os meninos). Nem sempre o impulso precisa ser drasticamente modificado para ocorrer sublimação. Pode-se optar, evidentemente, por realizar um desejo sexual ou outro tipo de desejo livremente, ao invés de sublimá-lo; a sublimação nem sempre garante a total utilização da energia proveniente do impulso modificado.

Deslocamento: É um processo psíquico através do qual o todo é representado por uma parte ou vice-versa (é aquilo que se pode chamar de “generalização”). Esse mecanismo não tem qualquer compromisso com a lógica. É o caso de alguém que tendo tido uma experiência desagradável com um policial, reage desdenhosamente em relação a todos os policiais. Ou alguém que, tendo uma experiência ruim dentro de um relacionamento amoroso, começa a achar que todos os relacionamentos amorosos são ruins e infrutíferos, ou que todos os homens ou todas as mulheres não prestam, já que não se deu bem com a pessoa do relacionamento anterior (ao invés de pensar no seu papel). Por isso o nome ‘deslocamento’: a energia foi deslocada de uma situação para outra semelhante. O deslocamento também é comum nos sonhos, quando uma pessoa é representada por outra (uma mesma pessoa no sonho pode parecer ter o rosto de várias outras). Acontece também na relação do cliente com o psicoterapeuta (o fenômeno que Freud chamava de transferência). O cliente passa a enxergar no(a) terapeuta, figuras do seu passado (seu pai, sua mãe, sua esposa ou esposo, etc.). Nesses casos, a pessoa passa a agir em relação ao terapeuta como se ele fosse a outra pessoa; se teve uma relação difícil com o pai, vai deslocá-la para o terapeuta e briga com ele como fazia com o pai. É como se o Ego estivesse tentando evitar entrar em contato com o conteúdo, defendendo-se pelo deslocamento do mesmo.

Racionalização: É uma forma de substituir por boas razões ou justificativas uma determinada conduta que exija explicações da parte de quem a adota. É uma forma de mentira inconsciente, colocada no lugar daquilo que foi reprimido. Ao invés de admitir que errou numa dada circunstância, por exemplo, o indivíduo tentará justificar sua ação de diversas maneiras. A racionalização é um processo pelo qual o sujeito procura apresentar uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ação, uma idéia, um sentimento, que ele tenha expressado. A racionalização intervém também no delírio, resultando numa sistematização mais ou menos acentuada. Como qualquer comportamento pode admitir uma explicação racional, muitas vezes é difícil decidir se esta é falha ou não. No tratamento psicanalítico encontraríamos todos os intermediários entre os dois extremos; em certos casos é fácil demonstrar ao paciente o caráter artificial das explicações que ele dá, e incitá-lo assim a não se contentar com elas. Em outros casos, os motivos racionais são particularmente sólidos, mas mesmo assim pode ser útil colocá-los “entre parênteses” para descobrir as satisfações ou as defesas inconscientes que a eles se juntam. Um exemplo é o da pessoa que justifica sua neurose obsessiva como hábito de higiene (lavar as mãos constantemente). Ela pode até possuir explicações muito boas, mas ninguém deixará de reconhecer o absurdo de suas ações exageradas em querer sempre se limpar. A racionalização também é uma forma de barrar o afeto, deixando livre apenas a idéia associada ao conflito. É comum em indivíduos que só usam o intelecto e a objetividade para resolver os problemas, nunca enfrentando as dificuldades diretamente ou nunca se deixando envolver emocionalmente.

Projeção: Este mecanismo se manifesta quando o Ego não admite reconhecer um impulso inaceitável proveniente dele mesmo e o atribui a outra pessoa. É o caso do menino que gostaria de roubar frutas do vizinho sem, entretanto, ter coragem para fazê-lo, e diz que soube que um menino, na mesma rua, esteve tentando pular o muro do vizinho. Na projeção, atribuímos a outra pessoa aquilo que está em nós, vemos nela aquilo que é uma vontade ou sentimento nosso. Sinto algo em mim, mas digo que é outra pessoa quem está sentindo. A pessoa que procede assim não tem, evidentemente, consciência disso. Trata-se aqui de uma defesa de origem muito primitiva, que vamos encontrar em ação particularmente na paranóia, mas também em modos de pensar “normais”, como a superstição. As fofocas são ótimas ocasiões para o exercício da projeção; na maior parte das vezes, as pessoas acusam os outros de estar fazendo algo que, na verdade, elas, no seu íntimo, também gostariam de estar fazendo.

Identificação: A identificação pode ser definida, segundo Freud (1921/1976) “como a mais remota [mais primitiva e original] expressão de um laço emocional com outra pessoa”. Nela, o indivíduo esforça-se por assumir as características do objeto que lhe serve de modelo, moldando seu próprio ego segundo o aspecto daquele a quem se dirige a identificação. Na identificação, queremos ser como aquele ou aquela com que nos identificamos, como a menina que quer ser professora quando crescer. No entanto, esse processo é bem diferente de uma relação verdadeira, na qual o indivíduo reconhece o outro como alguém distinto em relação a si próprio, baseando seu relacionamento com ele nessa distinção. Na identificação, a pessoa não se vê como diferente da outra; ela quer ser uma cópia do outro. Existe assim uma diferença entre identificação e amor objetal. Na relação de amor objetal, há um interesse real pela outra pessoa, sendo a libido dirigida para o objeto de amor, e não em direção ao próprio indivíduo. No amor, eu reconheço que o outro é diferente de mim, e que eu sou diferente do outro. A identificação costuma basear-se, portanto, em distorções da imagem do outro, tendendo a ser um processo parcial, em que apenas uma ou poucas características da outra pessoa são internalizadas pelo ego, ocasionando assim um relacionamento empobrecido, no qual esse outro jamais é considerado em sua inteireza. A identificação tende a constituir relações extremadas de apego e insegurança, em que o outro é visto, ou como totalmente mal, ou como totalmente bom, não se admitindo a ambivalência do objeto de amor. Todavia, a identificação também tem suas vantagens. Enquanto antecessora da relação objetal, ela prepara o caminho para um laço emocional efetivo. A qualidade comum a duas pessoas, elemento que as une na identificação, pode tornar-se assim o sucedâneo para uma relação de amor efetiva. A identificação também está na base da formação da personalidade. É por meio da identificação com os nossos pais e com outras pessoas de referências nas nossas vidas (professores(as), amigos(as), etc.) que a personalidade vai se constituindo.

Regressão: É o processo psíquico em que o Ego recua, fugindo de situações conflituosas atuais, para um estágio anterior do desenvolvimento. É o caso do jovem que, para chamar a atenção dos pais ou dos que estão à sua volta, regride para uma condição infantil, e faz birra. Ou o caso de alguém que depois de repetidas frustrações na área sexual, regride, para obter satisfações na fase oral, como o bebê, passando a comer em excesso. Para fugir dos problemas que o indivíduo enfrenta hoje, ele foge para o passado, para uma situação em que ele era criança e, portanto, menos responsável pelas situações da vida. Nem sempre a regressão se mostra clara: às vezes, as atitudes de solicitação que o indivíduo faz por atenção, podem ser interpretadas como justas, quando na verdade são imaturas. Nem mesmo o indivíduo pode se dar conta da infantilidade ou do caráter regressivo de seu comportamento.

Formação reativa: É um processo psíquico que se caracteriza pela adoção de uma atitude de sentido oposto a um desejo que tenha sido reprimido, constituindo-se, então, numa reação contra ele. Exemplo: a pessoa que manifesta agressividade contra outra, mas que reprime esse sentimento e passa a fazer o contrário, sendo atenciosa e carinhosa com a pessoa pela qual tem raiva. Ou também o avesso: a pessoa sente amor, mas nega esse sentimento, e passa a maltratar o outro como forma de se afastar e não sentir mais o sentimento amoroso inicial. O sentimento reprimido, contudo, permanece no inconsciente e pode vir à tona em momentos de explosão emocional. Nessas situações, a raiva reprimida vem à tona, e a pessoa agride o outro pelo qual tanto faz bem. Ou o oposto: da constante agressividade, a pessoa parte para uma situação de choro e pede desculpas, mostrando um afeto e uma preocupação que não haviam aparecido antes. Os efeitos adversos da formação reativa podem vir também em conta gotas: o indivíduo reprime a raiva, mas acaba expressando-a em comentários irônicos e jocosos, ou brincadeiras aparentemente inocentes; ou apresenta às vezes uma atitude irritante de reclamações pontuais, mas constantes, que denotam sua insatisfação, embora de forma velada e não violenta.

Fantasia: A fantasia consiste na realização imaginária ou simbólica de um desejo não satisfeito. Acontece com a criança, quando não pode ter um brinquedo ou doce que gostaria de ter, e passa a fantasiar a si mesma degustando do alimento ou brincando com o que queria. Também ocorre nos adultos. A fantasia é um mecanismo pouco eficaz, pois em algum momento o indivíduo perceberá que não realizou de fato o que queria. Ao contrário da imaginação, que cria novas fontes de entretenimento, a fantasia reproduz distorcidamente a realidade, sem realizar plenamente o desejo. Num longo prazo, pode inclusive acabar afastando o indivíduo de suas necessidades adaptativas, fechando-o num mundinho irreal, criado por ele mesmo.

Compensação: É o processo psíquico em que o indivíduo tenta compensar alguma deficiência ou imagem negativa que tem de si próprio, por meio de outro aspecto que o caracterize positivamente. É o exemplo do deficiente que se dedica a um determinado esporte para mostrar sua capacidade de superação, ou o indivíduo que se vê como alguém feio e decide destacar-se nos estudos. Em alguns casos, pode ser um mecanismo benéfico, desde que não recaia em formas de compensação prejudiciais (Exemplo: consumo exagerado de bebidas).

Expiação: É o processo psíquico em que o indivíduo quer pagar pelo seu erro imediatamente. Auto-flagelação (pecador). “Já que fiz tal coisa, não mereço ter outra” ou “devo pagar sofrendo”, etc.” A expiação está na base de muitos quadros de sado-masoquismo. Ela também pode se esconder em formas mais ou menos conscientes de auto-sabotagem: o indivíduo sabota suas realizações, por querer se auto-flagelar.

Negação: Processo pelo qual o sujeito nega que um pensamento, atitude, sentimento pertençam a ele. É uma espécie de cegueira: o indivíduo não consegue se reconhecer como portador daquilo que ele mesmo sente ou faz, e nega. Nesse caso, pode não haver projeção ou outro mecanismo envolvido. O indivíduo apenas se recusa a ver.

Todos esses exemplos ilustram os diferentes tipos de mecanismos que usamos para lidar com as situações da vida. Alguns deles são mais úteis, mas todos apresentam suas limitações. Quanto mais o indivíduo tem dificuldade em lidar com seus problemas, mais fará uso desses mecanismos, tentando impedir a mudança, a transformação, de ocorrerem.