segunda-feira, 21 de março de 2011

O inconsciente na psicoterapia (Parte Dois)

Sabe-se que no trajeto da criação dos métodos propostos por Sigmund Freud, alguns conceitos e técnicas foram abandonados e outros mantidos. O modelo inicial do aparelho psíquico, sustentado nas noções de inconsciente, pré-consciente e consciente, pode ser considerado um exemplo disso. Embora a divisão dos processos psíquicos nas três categorias citadas tenha se mantido, Freud (1923/1987) ampliara sua teoria inicial, ao incluir três novas instâncias. Quando foram criadas, ele nomeou-as de: isso, eu e super-eu, mais conhecidas como o id, o ego e o superego (essa última categorização, baseada na tradução inglesa das obras de Freud, tem sido criticada em revisões recentes que tomam por base o original alemão. Iremos mantê-la, no momento, apenas por ser a mais conhecida). Sem extinguir o modelo da 1° tópica, Freud conceberá que essas instâncias se distribuem ao longo do estado inconsciente, do estado pré-consciente e do estado consciente. O estado totalmente inconsciente é representado predominantemente pelo id, e os estados de ordem consciente e pré-consciente têm como seu representante direto o ego, já que o superego seria formado por aspectos tanto inconscientes como conscientes. Contudo, nesse mesmo trabalho – o Ego e o Id (1923) – Freud chegou a especular que o ego também teria sua contraparte inconsciente.

O ego poderia ser descrito aqui como “uma organização coerente de processos mentais”, associado à consciência, responsável pelo controle da motricidade, num nível fisiológico, e pelos processos de censura sobre os conteúdos dos sonhos, pela repressão e pela resistência frente ao reprimido. Sob tais aspectos, o ego relaciona-se fundamentalmente àquilo que inicialmente restringia-se aos sistemas pré-consciente e consciente. Em verdade, Freud considerará aqui o pré-consciente como núcleo do ego. É neste momento, contudo, que as relações entre os sistemas ou estados psíquicos descritos na 1° tópica, e as instâncias da 2° se tornam mais complexas, revelando aspectos antes não considerados ou abordados sob ponto de vista diverso. No que diz respeito ao aspecto inconsciente do ego, diz Freud (1923/1987, p. 30-31):
Ora, descobrimos durante a análise que, quando apresentamos certas tarefas ao paciente, ele entra em dificuldades; as suas associações falham quando deveriam estar-se aproximando do reprimido. Dizemos-lhe então que está tomado por uma resistência, mas ele se acha totalmente inadvertido do fato e, mesmo que adivinhe, por seus sentimentos desprazerosos, que uma resistência encontra-se em ação nele, não sabe o que é ou como descrevê-la. Entretanto, visto não haver dúvida de que essa resistência emana do seu ego e a este pertence, encontramo-nos numa situação imprevista. Deparamo-nos com algo no próprio ego que é totalmente inconsciente, que se comporta exatamente como o reprimido – isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente. Do ponto de vista da prática analítica, a conseqüência desta descoberta é que iremos parar em infindáveis obscuridades e dificuldades se nos ativermos a nossas formas habituais de expressão e tentarmos, por exemplo, derivar as neuroses de um conflito entre o consciente e o inconsciente. Teremos de substituir esta antítese por outra, extraída de nossa compreensão interna das condições estruturais da mente.
Assim, tais diferenciações acabaram exercendo modificações na prática terapêutica, ao ampliar a proposta inicial de tornar consciente o inconsciente, para uma perspectiva mais dinâmica, em que se trabalha a relação estabelecida entre as três instâncias. O inconsciente é assimilado quase inteiramente à noção de Id. Todas as principais características do inconsciente, detalhadas na primeira tópica, reaparecem aqui na instância do Id, termo que se refere à forma latina do pronome neutro “es”, que, em alemão, significa “isto”. Na segunda tópica, o id é visto como a parte mais antiga do aparelho psíquico, que contém tudo o que é herdado e que já se acha presente no nascimento – acima de tudo, os instintos. O Id é o responsável pelo princípio do prazer, e sua tarefa é a de tornar possível a satisfação imediata das necessidades e impulsos plenos de desejos, que são essencialmente de origem sexual. Assim, pode-se dizer que o Id envolve os conteúdos reprimidos em sua definição, mas não está limitado por estes, revelando-se uma instância bem mais abrangente (FREUD, 1940[1938]/1978).

A escolha do termo “isto” diz respeito à impessoalidade do Id. Ele é enxergado pelo ego como algo estranho, desconhecido, uma ‘coisa’ à parte. O ego, no entanto, estabelece com ele relações constantes, podendo ser visto como sua superfície: “O ego não se acha nitidamente separado do Id; sua parte inferior [pré-consciente] funde-se com ele” (FREUD, 1923/1987, p.38). Em verdade, o ego teria surgido inicialmente de uma diferenciação do Id, como resultado da influência direta do mundo externo sobre o sistema Percpeção-Consciente. O ego é, de fato, um ego corporal, que emerge quase como uma projeção psíquica da superfície do corpo, formado a partir das próprias sensações corporais. E da mesma forma que o Id procura intervir sobre o ego com o objetivo de satisfazer o princípio de prazer, o ego tenta aplicar a influência do ambiente externo e da realidade sobre o Id, no intuito de restringir sua ação, ao substituí-la pelo princípio da realidade. “Para o ego, a percepção desempenha o papel que no Id cabe ao instinto. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso-comum, em contraste com o Id, que contém as paixões” (FREUD, 1923/ 1987, p. 39).

A segunda tópica não se esgota, entretanto, com as diferenciações entre ego e Id. Freud (1923/1987) nos fala ainda a respeito de uma variação do ego, que constituiria a terceira instância da segunda tópica: o superego ou ideal do ego. Para compreender melhor o que seja essa instância, precisamos recorrer aos conceitos de identificação e complexo de édipo. Segundo Freud (1921/1976, p. 55) a identificação pode ser definida “como a mais remota [mais primitiva e original] expressão de um laço emocional com outra pessoa”. Nela, o indivíduo esforça-se por assumir as características do objeto que lhe serve de modelo, moldando seu próprio ego segundo o aspecto daquele a quem se dirige a identificação. Esse processo é bem diferente de uma relação objetal verdadeira, na qual o indivíduo reconhece o outro como alguém distinto em relação a si próprio, baseando seu relacionamento com ele nessa distinção. Na relação de objeto libidinal, há um interesse real pela outra pessoa, sendo a libido dirigida para o objeto de amor, e não em direção ao próprio indivíduo. Além do mais, a identificação tende a ser um processo parcial, em que apenas uma ou poucas características da outra pessoa são internalizadas pelo ego, ocasionando assim um relacionamento empobrecido, no qual esse outro jamais é considerado em sua inteireza. A identificação tende a constituir relações extremadas, em que o outro é visto, ou como inerentemente mal, ou como inerentemente bom, não se admitindo a ambivalência do objeto de amor.


Todavia, a identificação – enquanto antecessora da relação objetal – prepara o caminho para um laço emocional efetivo. A qualidade comum a duas pessoas, elemento que as une na identificação, pode tornar-se assim o sucedâneo para uma relação de amor efetiva. É nesse ponto que chegamos à questão do complexo de édipo, e de como tal complexo terá conseqüências significativas na formação do superego. O complexo de édipo está ligado à maneira como a Psicanálise entende a sexualidade infantil e a sexualidade como um todo, o que abordaremos melhor no tópico sobre o desenvolvimento psicossexual. Por ora, basta entendermos, de acordo com Freud (1905/1996) e (1923/1987) que:

- A criança estabelece inicialmente com sua mãe uma relação de dependência física e emocional, em que necessita desta última para sua gratificação e conforto. No caso do menino, a relação que este possui com seu pai, nesse primeiro momento, é de identificação;

- Por volta dos três a cinco anos de idade, o interesse sexual que o menino possui pela mãe intensifica-se, tornando a relação inicial de identificação com o pai uma relação de hostilidade e ciúme, em que se compete pelo amor da mãe. O pai é agora um obstáculo a ser enfrentado. O conflito decorre da ambivalência dessa relação, já que apesar de haver se identificado até então com seu pai, o menino reconhece agora nele um impedimento à realização de seus desejos;

- A dissolução do complexo de édipo é alcançada quando o menino consegue finalmente dirigir seu interesse sexual e afetivo a outros objetos que não sua própria mãe, e incorpora em sua conduta, aspectos masculinos provenientes da identificação com seu pai. Freud denomina tal reconhecimento de complexo de castração, em que a criança percebe que não poderá realizar seus desejos da maneira como esperava, diminuindo com isso sua onipotência e seu narcisismo. No caso da menina, dá-se o inverso, sendo que a relação hostil perante a mãe e o amor direcionado ao pai são substituídos pela identificação com a mãe e sua feminilidade, e com a possibilidade de se amar outras pessoas do sexo oposto que não o próprio pai.

- É justamente aqui que se inicia a formação do superego. Com o declínio do complexo de édipo, ocorre uma interiorização da imagem idealizada dos pais. Ao imitar o pai, o menino introjeta aos poucos a imagem dele em seu ego, procedimento esse que acarreta a diferenciação permanente de uma parte do ego infantil, a qual irá representar, a partir desse momento, o ideal do ego ou superego.

- Num segundo instante, a imagem idealizada dos pais transforma-se em imagem ideal de si mesmo, base de todo ideal humano. Por sua vez, a função paterna transmuta-se, no interior do ego, em uma instância voltada a exercer as mesmas atividades de punição, repreensão e consciência moral desempenhadas inicialmente pelos pais da criança. O superego pode ser definido assim, como o conjunto de valores morais e sociais internalizados pela criança a partir da relação idealizada com seus pais. A esse respeito, Freud (1923/1987, p. 47) elucida que:
O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa [...] que se manifesta sob a forma de um imperativo categórico.
Nesse sentido, o conceito de superego revela-se bem mais abrangente que o de censura pré-consciente, abarcando toda a questão da moralidade e da lei internalizadas pelo indivíduo. Na verdade, Freud negará a idéia de que os valores morais do ser humano tenham um significado supra-pessoal ou transcendente. A lei internalizada pelo indivíduo seria apenas um reflexo da lei posta em ação primeiramente pelo pai, e num segundo momento, por outras autoridades que se apresentariam ao longo de nossa história de vida.

À medida que uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego, e continuam, sob a forma de consciência (conscience), a exercer a censura moral. A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal de ego (FREUD, 1923/1987, p. 49).

A questão concernente ao aspecto inconsciente do superego demandaria aqui uma ampla discussão que simplesmente não poderíamos abarcar nos limites deste trabalho. Em sua obra Totem e Tabu, Freud (1913/1996) oferece uma descrição mais completa, em que sugere que a religião, a moralidade e o senso social, foram adquiridos filogeneticamente a partir do complexo paterno vivenciado em meio à horda primitiva, o qual é reproduzido em cada indivíduo como parte inconsciente de sua constituição super-egóica.

O mediador entre os impulsos e desejos do id e as cobranças do superego é o ego, que adentra o conflito entre as duas instâncias para controlar os impulsos advindos do id e para prestar contas ao superego quanto aos desejos e impulsos que ultrapassaram as barreiras entre o consciente e o inconsciente, sendo que este último exige sempre do ego medidas de controle, no caso, controle dos impulsos em favor dos valores morais idealizados. O superego apresenta-se como agência crítica que assume para si a lei e a censura, sendo a instância que determina ao indivíduo, não só o que ele pode ou não fazer e ser, mas também o que ele não pode ser ou fazer. Por conta isso, ele é também configurado como o princípio da moralidade – em contraste com o princípio do prazer, que caracterizaria o Id, e com o princípio da realidade, expressão do ego. O superego está destinado a levar o ego a reprimir os impulsos do id e fazer com que a frustração esteja presente na vida psíquica (REIS, 1984).

Ressaltando a importância do ego, chega-se às modificações terapêuticas instauradas pela segunda tópica. Caso a tarefa de conciliação do ego se torne muito rígida, havendo censura e repressão demasiada dos desejos do id, ou ao contrário, a dificuldade em aceitar a liberação condicionada de desejos instintivos, de forma a restabelecer a economia psíquica, atinge-se com isso um estado de ansiedade e tensão psíquicas. Além dessas duas instâncias, o ego também deve lidar com a realidade externa e as demandas do meio social. Logo, o ego é de um lado estimulado e de outro espremido, permanecendo em uma situação angustiante, geradora de neuroses. Uma pessoa cujo ego é bem estruturado consegue suportar melhor as frustrações da vida, seja quanto à impossibilidade de realizar muitos de seus desejos ou quanto à impossibilidade de ser, a todo o momento, a pessoa virtuosa e perfeita que gostaria. A análise, portanto, já não tem mais como objetivo exclusivo tornar consciente o inconsciente, mas sim fortalecer o ego. Como dirá Anna Freud (1983, p. 4):
Desde o começo, a análise, como método terapêutico, preocupou-se com o ego e suas aberrações: a investigação do id e de seus processos de funcionamento sempre foi um meio apenas, para se alcançar um fim. E o fim era invariavelmente o mesmo: a correção dessas anormalidades e a recuperação do ego em sua integridade.
Contudo, o ego não é a função mais importante do psiquismo e nem sempre tem o controle das outras instâncias; o ego é a representação de uma pequena parte da vida psíquica. A vida consciente normal é aquela na qual o ego resiste tanto às demandas do id, quanto às exigências do superego, proporcionando certa homeostase à economia psíquica, lembrando que quando este processo se depara com a fragilidade egóica, são instaladas na vida psíquica do indivíduo as neuroses. Apesar de todo este desempenho que as instâncias psíquicas apresentam, nem sempre há a possibilidade do inconsciente se manifestar por meio do consciente; daí que, nos sonhos, o inconsciente busca um caminho alternativo que se pronuncia por intermédio das imagens, substituindo os conteúdos barrados pela consciência. O inconsciente transmite sua mensagem tomando como veículo o imaginário psíquico, e aproveita para emitir seus sinais driblando e maquiando os resultados que aparecem, muitas vezes em forma de sonhos, lapsos, atos falhos, sintomas e desejos substitutos aos objetos reais. É assim que a comunicação é representada pelo inconsciente. Nesse sentido, Freud (1923/1987) amplia a definição inicial de inconsciente ao estipular certa distinção entre o que seria o inconsciente em seu aspecto dinâmico, e o inconsciente em seu aspecto descritivo. O fator dinâmico envolveria o conjunto das manifestações inconscientes perceptíveis pela consciência – em outras palavras, os fenômenos inconscientes – enquanto o aspecto descritivo designa o inconsciente apenas como instância psíquica, ‘local’ em que residem os conteúdos reprimidos e os representantes instintuais, tal qual na primeira tópica.

Para lidar com os impulsos provenientes do Id, o ego se utiliza de diferentes mecanismos defensivos. Dentre tais mecanismos, o mais saudável pode ser considerado o recurso da sublimação, como forma de se aproveitar da energia emanada do inconsciente, para gerar atividades socialmente aceitas. É como se na sublimação, a libido sofresse um deslocamento cuja finalidade não implica a satisfação sexual em si mesma, mas um reaproveitamento produtivo da energia originalmente advinda das funções somáticas. A sublimação permite ao sujeito viver integrado à vida cultural e social, porque permite a substituição do desejo inconsciente que não pode ser satisfeito naquele momento por objetos compatíveis a esse desejo, e assim, de forma indireta é possível realizá-lo, trazendo a satisfação necessária ao indivíduo sem que o mesmo precise sentir angústia ou frustração pela não satisfação da libido (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).
Fonte: FERNANDES, Maria de Fátima.
O inconsciente na filosofia: uma revisão do conceito de nãoconsciente
na obra de Arthur Schopenhauer e suas relações com o
inconsciente freudiano. Maria de Fátima Fernandes. Guarulhos, 2008.
85 f. 31 cm.

O inconsciente na psicoterapia (Parte Um)

O uso da psicoterapia como forma de tratamento das neuroses, seguiu um desenvolvimento marcado por diversas mudanças significativas e específicas, no qual o conceito de inconsciente desempenhou um importante papel, ao direcionar o processo de análise para dimensões mais profundas da psique e ao sugerir que as causas dos sintomas apresentados pelos pacientes iam muito além do que uma visão superficial, no nível da consciência, podia revelar. Ao versar sobre a evolução da psicoterapia e sobre o valor da noção de inconsciente no tratamento das perturbações neuróticas, Jung (1946/1985, p. 19) dividiu esse desenvolvimento em mais ou menos três estágios principais: a sugestão, o método catártico e, finalmente, o método psicanalítico. Inicialmente, a idéia era reprimir os sintomas, a partir de uma postura firme e decidida do terapeuta quanto à irracionalidade e absurdo contidos em tais manifestações sintomáticas. Essa forma incipiente e até mesmo ingênua de tratamento baseava-se quase exclusivamente na sugestão:
Olhando mais de perto, o que naquele tempo se entendia por psicoterapia, era uma espécie de conselho enérgico ou benevolente paternal [...] forma de convencer o doente de que o sintoma “era apenas psíquico” e, portanto, não passava de imaginação doentia.
Posteriormente, na obra Estudos sobre a Histeria, Freud e Breuer (1893) reconheceram a importância de se adentrar nas origens dos sintomas, vendo-os não mais como mero resultado da imaginação neurótica, mas como a expressão de traumas psicológicos não acessíveis à consciência. Essa concepção faria emergir o chamado método catártico, enquanto alternativa à sugestão como procedimento terapêutico. Desta vez, o que se buscava era trazer à tona os incidentes traumáticos, visando à ab-reação das emoções causadoras da sintomatologia neurótica (FREUD, 1914/1996; LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).

Todavia, a partir de A Interpretação dos Sonhos, Freud (1900) não tardou muito em perceber algo mais nos traumas de seus pacientes, tendo verificado que o simples processo de ab-reação não serviria, por si só, como forma de eliminar a neurose. Foi a partir desse reconhecimento que ele aprofundara o estudo do inconsciente, formulando sua teoria psicanalítica. Freud passaria a se utilizar da associação livre e do método interpretativo, recorrendo aos sonhos e fantasias dos pacientes como material de análise. Suas idéias controversas e um tanto revolucionárias para a época, geraram as mais diversas reações por parte do público e de seus seguidores, propiciando o surgimento de várias teorias dissidentes (GARCIA-ROZA, 1984; LAPLANCHE; PONTALIS 2001; WOLLHEIN, 1971).

O abandono do método hipnótico por parte de Freud, ainda hoje criticado por muitos, foi o que abriu, no entanto, toda uma série de possibilidades não imaginadas antes, tendo como ponto de partida dois conceitos basilares: o de repressão – ou defesa, na qual o paciente se recusa a entrar em contato com os conteúdos inconscientes, barrando sua entrada na consciência e movendo-os de volta para o inconsciente – e o de transferência, em que se observa a interferência de conteúdos inconscientes na relação entre o paciente e o analista. Segundo Freud (1914/1996, p. 26):
A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico sem recorrer a hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho da análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose. [...] Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes no passado: a transferência e a resistência.
Consequentemente, ao remontar as origens dos sintomas da neurose, Freud chegaria aos problemas da alma infantil até atingir a questão da sexualidade, elementos esses que irão compor o colorido da teoria psicanalítica sobre o inconsciente, mesmo no final da obra de Freud, quando os conceitos de pulsão de vida e de morte são incorporados no quadro geral.

A 1º TÓPICA FREUDIANA

O conceito de inconsciente na Psicanálise não representa uma idéia isolada. Ele integra uma concepção mais ampla a respeito da estrutura e desenvolvimento da personalidade. Por sua vez, o conceito psicanalítico de personalidade atravessara três grandes momentos ao longo da obra de Freud: 1) o da personalidade como estrutura resultante de processos exclusivamente fisiológicos / neurológicos; 2) o da personalidade vista como aparelho psíquico – também chamada de 1° tópica freudiana – e 3) o da personalidade como uma estrutura dinâmica que engloba os elementos da 1° tópica, adicionando-lhes as instâncias do Id, Ego e Superego – modelo este denominado de 2° tópica (REIS, 1984).

Ao escrever a obra Projeto para uma Psicologia Científica, Freud (1950[1895]/1996) pretendia, inicialmente, reduzir as explicações acerca do funcionamento mental aos processos e modificações fisiológicas, fisicamente mensuráveis. Seu intuito era o de fazer a Psicologia entrar para o rol das ciências naturais. Contudo, essa proposta inicial acabou por ver-se frustrada diante das informações mais ricas e abrangentes que a análise da vida psíquica originara por si só. Com a Interpretação dos sonhos, Freud (1900/1996) reconstrói inteiramente sua Psicologia neurológica, propondo em seu lugar uma descrição metafórica da mente como uma espécie de aparelho o qual seguiria determinadas leis hipotéticas. É este segundo modelo, o da 1° tópica, que analisaremos num primeiro momento.

A conceituação da personalidade e suas funções como um aparelho psíquico foi designada por Freud pelo nome de Metapsicologia. A análise metapsicológica envolveria três diferentes âmbitos:
a) Dinâmico = ligado às relações de causa e efeito entre os processos ou atos psíquicos ou, em outras palavras, o conjunto das leis que regem as relações entre os diferentes conteúdos psíquicos;
b) Topográfico = ou a idéia de que tais processos ocupariam uma espécie de lugar ou região hipotética na estrutura total da mente, sendo esta caracterizada por sistemas de funcionamento específico;
c) Econômico = relacionado ao valor funcional dos atos ou processos psíquicos, concepção esta associada a uma compreensão energética do psiquismo, ou a variados graus de intensidade dos atos psíquicos. É aqui que o conceito de libido – ou energia psíquica e sexual – desempenhará papel fundamental (FREUD, 1915/1996b).
Esmiuçando melhor a dimensão topográfica da 1° tópica freudiana, faz-se necessário compreender que, nesse modelo, as idéias de Freud já não têm relação com a explicação fisiológica da teoria inicial; os lugares ou regiões a que se refere o autor possuiriam aqui um caráter bem mais abrangente. Segundo Freud (1915/1996b, p. 179): “Nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam situadas no corpo.”

Nesse sentido, os processos mentais foram divididos em três sistemas básicos: o inconsciente (Ics), o consciente (Cs) e o pré-consciente (Pcs). O sistema consciente – também chamado de Percepção-Consciente (Pcpt-Cs) – refere-se ao conjunto de relações mentais estabelecidas com o meio externo, visando à adaptação e relacionamento com o mundo, instância essa receptora tanto das estimulações ambientais como das estimulações internas. O pré-consciente – enquanto uma instância crítica que submete os conteúdos inconscientes a uma prévia reflexão ou censura – impediria a irrupção de conteúdos indesejáveis ou incompatíveis com o caráter consciente, servindo como um mecanismo de proteção aos valores do indivíduo. Ao ato de barrar ou impedir a emergência de conteúdos inconscientes, devolvendo-os, por assim dizer, ao inconsciente, Freud (1915/1996b) dera o nome de repressão.

O pré-consciente envolveria ainda todos aqueles conteúdos que possuem algum potencial para tornarem-se conscientes, mas que ainda se encontram no limiar entre o sistema inconsciente e consciente. A censura – isto é, o teste mental por meio do qual um ato psíquco ou representação proveniente do inconsciente é reprimida, retornando ao sistema de origem – exerceria sua função exatamente no ponto de transição do inconsciente para o consciente, ou seja, no sistema pré-consciente.

No modelo freudiano da psique, o inconsciente desempenha função primordial, visto que os seus conteúdos determinam, em grande parte, a extensão do funcionamento cabível às outras instâncias. Para Freud (1915/1996b) o inconsciente não serve apenas de depósito aos conteúdos previamente rejeitados, pois não se constitui exclusivamente pelo reprimido. Trata-se de uma instância complexa e, em muitos aspectos, desconhecida, a qual revelaria a origem de muitos de nossos comportamentos individuais sem justificação aparente. Para o autor, o conceito de inconsciente seria uma suposição legítima e necessária, decorrente da observação dos próprios fenômenos compilados ao longo da história da psicanálise – hipnose, transferência, etc.

Um dos grandes desafios a serem enfrentados logo de início, foi o fato de que o inconsciente não pode ser conhecido diretamente, já que não se refere a um dado inequívoco e evidente da experiência mental dos indivíduos. O inconsciente só é apreendido mediante suas manifestações indiretas no sistema consciente, por meio de lapsos, atos falhos, sintomas, fantasias, sonhos, etc. Tais manifestações adviriam do bloqueio pré-consciente de excitações internas que funcionam como representantes psíquicos dos impulsos – ou instintos. Freud (1915/1996a) define o instinto como um estímulo mental interno, uma disposição hereditária que exerce força constante sobre o sistema consciente, em busca da satisfação de determinadas finalidades – fome, por exemplo.

O instinto tem como origem a energia somática, advinda da região do corpo onde nasce a excitação. Desse modo, há uma infinidade de instintos todos eles proporcionais a reações físicas específicas – sexualidade, agressividade, alimentação, etc. Pode-se dizer que a dinâmica instintual é basicamente a do prazer-desprazer: diminuição de sentimentos desagradáveis originados pela estimulação interna, com a conseqüente emergência de sentimentos agradáveis decorrentes da diminuição dessa excitação. Tal concepção foi mais tarde retomada e ampliada em sua obra Além do Princípio do Prazer, com a incorporação dos conceitos de pulsão de vida e de morte (FREUD, 1920/1916).

Nesse primeiro momento de sua teoria, Freud (1915/1996a) dividirá os instintos em duas grandes classes: os instintos do ego – ou autopreservativos – e os sexuais, ambos de igual importância na vida psíquica. As exigências do meio social tendem a limitar o campo de ação disponível para esses instintos, e a repressão dos mesmos constitui uma tarefa cultural árdua, que nem sempre incorre em sucesso. A neurose seria, em outros termos, uma tentativa mal sucedida de se obter a reconciliação entre exigências tão díspares. Nesta primeira fase, pode-se resumir todo o esforço terapêutico da psicanálise em tornar consciente o inconsciente, não só no que tange às idéias reprimidas, mas aos afetos que lhe são associados (REIS, 1984). O inconsciente não guardaria os instintos humanos em sua forma original, mas representações desses instintos – as chamadas pulsões – as quais, na maior parte das vezes, não coadunam com as exigências da civilização e por isso são recalcadas.

Para Freud (1915/1996b, p. 182), os instintos seriam dessa maneira, os únicos elementos da psique a não comportarem a antítese consciente-inconsciente:
Um instinto nunca pode tornar-se objeto da consciência – só a idéia que o representa pode. Além disso, mesmo no inconsciente, um instinto não pode ser representado de outra forma a não ser por uma idéia. Se o instinto não se prendeu a uma idéia ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ele. Não obstante, quando falamos de um impulso instintual inconsciente ou de um impulso instintual reprimido, a imprecisão da fraseologia é inofensiva. Podemos apenas referir-nos a um impulso instintual cuja representação ideacional é inconsciente, pois nada mais entra em consideração.
Embora não seja possível acessar diretamente os conteúdos inconscientes, pode-se compreender muito a respeito dos mesmos por intermédio de suas manifestações indiretas. Com isso, Freud (1915/1996b) chega à conclusão de que o inconsciente é um território ativo, o qual possui leis e princípios que lhe são próprios e que diferem bastante dos padrões que norteiam o sistema pré-consciente. Pode-se abordá-lo a partir de dois aspectos principais:

a) Seus conteúdos, os quais incluem:
- registros mnêmicos ou idéias, para as quais não é direcionado nenhum investimento energético consciente, podendo ser descritas como originárias de impulsos carregados de desejo, cuja satisfação livre e direta é recusada pelo sistema pré-consciente;
- as chamadas protofantasias, ou formações herdadas resultantes da precipitação psíquica, no inconsciente, de eventos e experiências cuja ocorrência remonta aos primórdios da humanidade. Tais vestígios arcaicos de fantasia seriam passados de geração em geração, constituindo uma herança universal. Reis (1984) chama a atenção para a enorme semelhança entre o conceito de protofantasia de Freud e os arquétipos junguianos, lembrando-se, todavia, que Freud não viria a desenvolver e expandir esse conceito do mesmo modo que Jung;
b) Seu funcionamento peculiar. O sistema inconsciente nos propõe uma séria revisão daqueles conceitos que dirigem as atividades conscientes e, de certo modo, revelam-nos uma concepção evolutiva da mente e da personalidade. Os sistemas pré-consciente e consciente seriam o resultado de desenvolvimentos posteriores da psique, enquanto o inconsciente estaria mais próximo de nossa natureza básica. Assim, aquilo que consideramos essencial à nossa relação com o mundo e mesmo com alguns dos processos internos, não se aplica ao inconsciente. Podemos resumir tais divergências como se segue:

- No inconsciente não há contradição = os representantes instintuais que constituem o núcleo do inconsciente, existem lado a lado sem influenciarem-se mutuamente. Nenhum impulso cancela ou reduz o outro, mesmo quando suas finalidades são incompatíveis, pois há uma tendência para sua unificação numa finalidade intermediária.

- No inconsciente não há dúvida nem negação = os representantes instintuais buscam unicamente a sua própria realização, condição essa jamais questionada em si mesma. Como veremos adiante, o inconsciente é regido pelo Princípio do Prazer, para o qual não há limites estabelecidos a priori, a não ser o próprio desejo de vivenciar afetos prazerosos. A negação, segundo Freud (1915/1996, p. 191) “é um substituto, em grau mais elevado, da repressão” e, portanto, não existe no inconsciente como condição pré-estabelecida, sendo, na verdade, muito mais uma imposição da consciência.

- O inconsciente é regido pelo processo psíquico primário = a forma como a energia psíquica flui ao longo do sistema inconsciente é livre, e as trocas energéticas bastante maleáveis, pois não há impedimentos, distinções, classificações, lógica, etc. que se apliquem a esses processos. A fantasia é uma característica primordial do inconsciente. Antes de se desenvolver o pensamento e as representações verbais propriamente ditas, a fantasia é quem ocupa lugar de destaque na vida mental. Na fantasia, qualquer tipo de relação mental é imaginável, daí o fato de ser admitida como processo primário, isto é, como função mais básica ou mais primitiva, característica dos sonhos, das psicoses e dos estágios iniciais e rudimentares da vida mental.

- O inconsciente é atemporal = os conteúdos inconscientes são praticamente “eternos”, visto não possuírem absolutamente qualquer referência ao tempo. Não são ordenados temporalmente e não se alteram com o passar do tempo. Um registro inconsciente de algo reprimido há muitos anos pode emergir novamente, tempos depois, de maneira bastante vívida.

- O inconsciente ignora a existência da realidade = os conteúdos inconscientes têm por finalidade apenas sua satisfação e a conseqüente obtenção de prazer. Não há qualquer representação do real no inconsciente, mas tão somente um universo fantasioso oriundo dos desejos instintuais. O Princípio da Realidade, inerente ao funcionamento pré-consciente e consciente, não anula a busca por prazer, mas condiciona esta última a normas e valores sociais. Já não se trata de abandonar definitivamente o prazer, mas em se propiciar recursos para que o prazer seja alcançado de modo socialmente aceitável, normatizado.
Quadro 1. Principais distinções entre os sistemas psíquicos (com ênfase para as características dos sistemas pré-consciente e consciente).
As idéias esposadas por Freud a respeito do inconsciente em sua primeira tópica não chegaram a sofrer considerável alteração, mas a elas foram incorporados outros conceitos que formarão a base da chamada 2° tópica, revolucionando sua teoria inicial.

Fonte: FERNANDES, Maria de Fátima.
O inconsciente na filosofia: uma revisão do conceito de não-consciente
na obra de Arthur Schopenhauer e suas relações com o
inconsciente freudiano. Maria de Fátima Fernandes. Guarulhos, 2008.
85 f. 31 cm.