domingo, 30 de dezembro de 2012

Motivação - Um resumo das teorias psicológicas

A motivação humana foi compreendida de formas diferentes ao longo do tempo, sempre de acordo com o pesquisador ou a escola de psicologia considerada.
Segue, para os nossos leitores, um resumo das principais teorias a respeito.

A CONTRIBUIÇÃO DE FREUD

De acordo com Sigmund Freud, para analisarmos os processos inconscientes, primeiramente, temos que entender que a mente consciente exerce um controle sobre o inconsciente, controle esse que se efetua através de uma coerência lógica, a qual se opõe aos relatos inconscientes, inviabilizando a determinação destes se tornarem acessíveis. O sistema inconsciente é formado por conteúdos pessoais reprimidos e pulsões de origem biológica. Estas se opõem normalmente às exigências da realidade e da civilização, o que gera uma atitude de inibição por parte da consciência. Os conteúdos presentes no inconsciente têm uma relação entre si diferente da que ocorre na consciência, reafirmando esta última como um dado inegável da experiência humana. O inconsciente não se caracteriza como um conteúdo específico, mas, como o modo segundo o qual um conteúdo opera, impondo-lhe uma determinada forma. Ele se expressa através de símbolos (perceptíveis principalmente nos sonhos), fato este que decorre dos mecanismos de defesa pré-conscientes, os quais buscam “mascarar” conteúdos recalcados. Não se pode, portanto, ver o inconsciente apenas através de um aspecto biológico, porque o inconsciente só existe quando visto por meio do simbolismo, uma vez que é o recalcamento que produz o inconsciente, e, isso só ocorre por exigência do simbolismo. (ROSA , 1984).

A energia psíquica ou libido, responsável pela viabilização dos processos mentais é de cunho essencialmente sexual. Freud tendia a conceber a origem das psicopatologias na problemática sexual, sobretudo advinda da infância. Muito daquilo que vivenciamos quando criança permanece conosco ao crescermos, por vezes, sob a forma de complexos e desejos recalcados. Estes têm uma participação decisiva na estruturação de nossa personalidade e, por conseguinte, na motivação de nossos hábitos, crenças e atitudes (REIS, MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984).


A CONTRIBUIÇÃO DE JUNG

Jung (1983), criador da psicologia analítica, em contraposição à tese freudiana do inconsciente, postula que o comportamento humano é condicionado não apenas pela história individual, mas também racial e coletiva. A teoria Junguiana da personalidade compreende tanto o campo da consciência e seus aspectos quanto o do inconsciente. A criança ao nascer, apresenta um padrão de funcionalidade psíquica inconsciente. Através de sua colisão com a realidade externa, tem início a formação da estrutura egóica, processo que perdurará por toda a vida. O ego, portanto, é o centro da personalidade consciente, sujeito de todas as adaptações do indivíduo ao meio e possuidor de certa vontade livre. Ele não representa, entretanto, o cerne da personalidade total, senão uma de suas várias manifestações.

Por de trás da consciência, agem fenômenos obscuros e imprevisíveis ao Ego, e que constituem a ação de uma entidade ao mesmo tempo distinta e profundamente vinculada à personalidade consciente: o Self, ou a expressão da totalidade psíquica (si mesmo). Todo ser humano traz em si um impulso básico à expressão e ao desenvolvimento de suas potencialidades. A meta de nossa existência, segundo Jung, consiste no aperfeiçoamento e integração cada vez maiores da personalidade, visando assim à expressão daquilo que somos em essência. Cada ser é especial e singular e tem como caminho tornar-se o ser único que de fato é. A isso Jung deu o nome de processo de individuação (REIS, MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984).

Jung via a personalidade individual como produto e continente de sua história ancestral. Os seres humanos modernos foram moldados em sua presente forma pelas experiências cumulativas de gerações passadas. As fundações da personalidade são primitivas, inatas, inconscientes e provavelmente universais. Nascemos com muitas predisposições legadas por nossos ancestrais; essas predisposições orientam nossa conduta e determinam em parte aquilo de que nos tornaremos conscientes e que responderão em nosso mundo experencial, isto é, existe uma personalidade racialmente pré-formada e coletiva que funciona seletivamente no mundo da experiência e é modificada e elaborada pelas experiências vividas conscientemente. A personalidade de um indivíduo resulta de forças internas agindo sempre sobre e sendo influenciadas por forças externas (REIS, MAGALHÃES; GONÇALVES, 1984).

Jung considera o inconsciente como uma parte tão vital e tão real da vida de uma pessoa quanto a consciência e o mundo do Ego. Em um de seus exemplos, Jung, relaciona a capacidade do inconsciente com a nossa vida diária, ao nos depararmos com dilemas e conflitos, e, resolvermos de forma surpreendente através de inspirações advindas do inconsciente (JUNG, 1985).

Jung concebia a existência de dois tipos de inconsciente: o pessoal e o coletivo. O inconsciente pessoal representa o depositário de conteúdos que não obtém a aceitação do Ego: contém material dotado de carga libidinal insuficiente para atingir a consciência, ou que não se harmoniza com ela e, portanto, não pode nela permanecer. Contém material reprimido carregado de forte potencial afetivo (ódio, inveja, agressividade), que tendem a formar complexos. Em suma, o inconsciente pessoal corresponde o mesmo que o inconsciente freudiano. Numa ampliação da teoria de Freud, Jung postula a existência de um inconsciente coletivo, o qual é formado de disposições latentes herdadas, que induzem reações idênticas em quase todas as pessoas: são os arquétipos, que constituem a representação psíquica da estrutura cerebral. Os arquétipos são impessoais, comuns a todos os homens e transmitem-se pôr hereditariedade. A mente humana não está presa somente ao passado de sua infância, mas ao passado de sua espécie. Assim como o homem herda caracteres biológicos, herda também imagens e experiências de um passado ancestral, inconscientemente (JUNG, 1983).

A CONTRIBUIÇÃO DE MASLOW

Segundo Abraham Maslow (1999), grande parte da natureza interna é inconsciente. O reprimido permanece, no entanto, como determinante do comportamento. A fonte de repressão pode ser externa ou intra-psíquica. O núcleo interno ou EU alcança a idade adulta, como criação pessoal. A vida é uma série de escolhas onde há um determinante pessoal preponderante.

Maslow propôs um ponto de equilíbrio entre necessidades biológicas e sociais, integrando, dessa maneira, diversos conceitos em teoria da motivação. Segundo ele, as pessoas assumem várias necessidades que competem entre si para expressar-se. Tais necessidades se agrupam hierarquicamente de acordo com as propriedades da pirâmide, sendo que as necessidades mais básicas têm de ser satisfeitas primeiro, para que as demais possam emergir. Na base da pirâmide, encontramos as necessidades fisiológicas fundamentais, indispensáveis à sobrevivência, como a de comida, água, sono, sexo, temperatura estável, etc. Elas têm de estar consideravelmente satisfeitas para que o indivíduo comece a se preocupar com necessidades mais elevadas. Ao alcançar uma satisfação razoável de suas demandas fisiológicas, o indivíduo atinge então a segunda camada da pirâmide constituída pelas necessidades de segurança e proteção. A satisfação destas induzirá a busca por amor e pertinência, estima, estética e, finalmente, à Auto-realização, meta primordial de todo ser humano. As pessoas se tornam frustradas quando não conseguem fazer uso de todo o seu talento ou buscar seus interesses verdadeiros (SHULTZ e SHULTZ, 1999).

A pessoa motivada pelo crescimento, ou auto-realização, é capaz de centralizar-se nos problemas e perceber situações e outras pessoas de modo mais objetivo, e, possui a capacidade de auxiliar-se por si mesma. Um passo rumo à nossa auto-realização é reconhecer as próprias defesas e trabalhar para abandoná-las. Precisamos nos tornar mais conscientes das maneiras pelas quais distorcemos nossa auto-imagem e a do mundo exterior através da repressão, projeção e outros mecanismos de defesa ((SHULTZ; SHULTZ, 1999).

A CONTRIBUIÇÃO DE ROGERS

Dentre os autores que se opuseram ás teorias do inconsciente e buscaram formas alternativas para explicar o fenômeno da motivação humana, estão B.F. Skinner e Carl Rogers. Através da teoria de Rogers tomamos conhecimento de várias premissas, inerentes à consciência humana. Para ele, em último caso, só temos acesso aos dados de nossa experiência consciente. Nossa vida é determinada em grande parte pelas escolhas que fazemos e pelo conceito que desenvolvemos acerca de nós mesmos (SHULTZ; SHULTZ, 1999).

Rogers acredita que o organismo humano vem progredindo em direção a uma evolução cada vez mais plena da consciência; esta é sua meta e seu caminho. Sendo que nesse nível - o da consciência - surgem possivelmente novas direções para a espécie humana, temos uma relação recíproca entre causa e efeito, e é neste instante em que as escolhas são feitas e que as formas espontâneas são criadas, estando assim diante da mais desenvolvida das funções humanas. O autor manifesta seu pensamento fundamentado na existência do que seria a autoconsciência, a qual torna possível uma escolha mais livre de introjeções, uma escolha consciente mais em sintonia com o fluxo evolutivo, que também permite à pessoa maior potencial consciente, dos estímulos, idéias, sonhos, e do fluxo de sentimentos, emoções e reações fisiológicas advindas do seu interior (ROGERS, 1983).

Porém, ainda que uma pessoa esteja funcionando dessa forma, não quer dizer que ela esteja consciente de tudo o que se passa no seu mundo interno. O indivíduo pode viver subjetivamente suas experiências, ou pode abstrair essa subjetividade e formular conscientemente um sentimento - estou sofrendo, estou com medo, estou amando - o que realmente importa é que, quando uma pessoa está funcionando plenamente, não há barreiras, inibições que impeçam a vivência integral do que quer que seja presente no organismo. A consciência está participando de forma mais ampla e criativa. “A maioria dos modos de comportar-se adotados pelo organismo são os conscientes com o conceito do eu ...” (ROGERS, 1975, p. 507).

Para Rogers, o auto-conceito nem sempre está na consciência, mas sempre existe para ela, isto é, o auto-conceito, por definição, não considera a imagem e a avaliação que o indivíduo faz de si mesmo inconscientemente, ou seja, que não está ao alcance da consciência. O auto-conceito é considerado fluido, mais um processo do que uma entidade; mas, num dado momento, passa a agir como uma entidade fixa. Para Rogers, como o self não tem acesso aos conteúdos inconscientes, estes não são levados em conta; leva-se em conta apenas o que está ao alcance da consciência. Desse modo, o autor coloca de lado a possibilidade de analisarmos o inconsciente, contrariando a visão determinista da psicanálise (ROGERS, 1975).

O self é a figura que o indivíduo tem de si mesmo. A maior parte do comportamento adotado por uma pessoa é consistente com seu auto-conceito, ou seja, o comportamento decorre da convergência entre o self e a experiência. O organismo reage ao campo do modo como o vivencia e o percebe; este campo perceptual é, para o indivíduo, a realidade. O comportamento é fundamentalmente uma tentativa do organismo para satisfazer suas necessidades como vivenciadas; no campo como ele o percebe, essa tentativa é dirigida a objetivos. (ROGERS, 1975).

O melhor ponto para observar o comportamento é o quadro de referência interno do próprio indivíduo. Rogers pretende ressaltar com essas proposições que somente o próprio indivíduo pode conhecer seu mundo de experiência de modo completo e genuíno; jamais poderemos conhecer a plena experiência de outra pessoa. Dessa forma, entender um outro indivíduo através do seu próprio quadro de referência é concentra-se na realidade subjetiva que existe na experiência do indivíduo em qualquer momento. É necessário empatia para alcançar esse entendimento; aqui Rogers demonstra sua principal crítica à Psicanálise, à idéia de que é possível ao psicanalista conhecer o mundo interno do indivíduo por meio de técnicas e pressupostos teóricos específicos (ROGERS, 1975; 1983).

A CONTRIBUIÇÃO DE SKINNER

Já de acordo com B.F. Skinner, um dos principais representantes da escola comportamental em psicologia, não há como estudar o ser humano do ponto de vista de sua subjetividade; seus sentimentos, emoções e processos do pensamento devem ser levados em consideração, mas definitivamente não são passíveis de sofrerem a aplicação dos métodos da ciência empirista. O único meio razoável para a compreensão do homem é o de seu comportamento manifesto: o mundo da objetividade (SKINNER, 1974).

Através da explicação do autor, tomamos conhecimento de que o comportamento é extremamente complexo, desde que é um processo, e não uma coisa. O comportamento não pode ser facilmente imobilizado para observação; ele é mutável, fluido e desaparece, e, por esta razão, faz grandes exigências técnicas da engenhosidade e energia do cientista. Ainda que o comportamento seja determinado por muitos fatores, pode ser tratado em termos de leis. Existe o interesse em saber por que os homens se comportam da maneira como o fazem, portanto, qualquer condição que tenha algum efeito demonstrável sobre o comportamento deve ser considerada. Está-se interessado nas causas do comportamento humano. Descobrindo e analisando estas causas poderemos prever o comportamento e controlá-lo, na medida em que o possamos manipular. Skinner enfatiza, dessa forma, a extrema importância do meio ambiente para o controle do comportamento; sempre existe algum controle do meio sobre o comportamento, ainda que alguém se empenhe em rejeitar o mundo, através da redução sistemática de certas formas de controle do mundo sobre ele, fisicamente a interação continua (SKINNER, 1974).

Há dois tipos principais de comportamento: respondente (involuntário e incondicionado) e operante (voluntário e condicionável). Vários são os métodos de controle do comportamento. Todos eles tem por base o conceito de reforço. Segundo Reese (1978, pág.16): “[...] o reforço é qualquer evento que aumenta a força de qualquer comportamento operante”. O ato de oferecer um reforço conseqüentemente após uma resposta, constitui um reforçamento. Tanto o reforço quanto o reforçamento podem ser positivo ou negativo. No caso de reforçamento positivo, o reforço utilizado deve estar diretamente relacionado com algo agradável tanto ao sujeito quanto ao indivíduo reforçador, por isso, também será positivo. Este tipo de reforçamento tende sempre a beneficiar o reforçador.

Analisando a interação de dois ou mais indivíduos em sistema social temos um tipo específico de comportamento social, o qual pode ser definido como o comportamento de duas ou mais pessoas em relação ao ambiente comum. As emoções sociais são predisposições para agir de modo que podem ser positiva ou negativamente reforçadora para outros. O favor e amizade, por exemplo, se referem a tendência para administrar reforços positivos; o amor poderia ser analisado como a tendência mútua de dois indivíduos a se reforçarem um ao outro. Em lugar de tendências para se comportar de certos modos, podem ilustrar tendências para ser reforçado por certos estímulos sociais (SKINNER, 1974).

O comportamento humano é controlado por muitas instâncias sociais: pelo governo, pela religião, pela psicoterapia, pela economia, e pela educação. O governo se utiliza de técnicas de punição, ele é o poder para punir. A religião se utiliza de uma extensão da técnica governamental, ou seja, classificando o comportamento não só como bom e mau, legal e ilegal, mas como moral e imoral ou virtuoso e pecaminoso, é então reforçado ou punido de acordo. Sob o ponto de vista da psicoterapia, certos subprodutos não resultam em vantagens para o controlador e muitas vezes são prejudiciais tanto para o indivíduo quanto para o grupo. São especialmente encontrados onde o controle for excessivo ou inconsciente – aqui, inconsciente deve ser compreendido no sentido de não-perceptível. Um exemplo simples do controle econômico é a indução de um indivíduo a realizar um trabalho através de reforço com dinheiro ou bens. Da mesma forma que o comportamento do indivíduo é positivamente reforçado pelo grupo, os bens são bons no sentido de serem positivamente reforçadores. O reforço educacional faz certas formas prováveis em determinadas circunstâncias. Ao preparar o indivíduo para as situações que ainda não surgiram, os operantes discriminativos são colocados sob controle de estímulos que provavelmente ocorrerão nessas situações. Eventualmente, conseqüências não educacionais determinarão se o indivíduo continuará a se comportar da mesma maneira. A motivação humana, para Skinner, depende essencialmente de estímulos externos. Embora interno, o motivo só é desencadeado graças à ação do ambiente sobre o indivíduo; ele é a forma como o indivíduo reagirá frente à influência do meio (SKINNER, 1974).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender as diferentes abordagens sobre o inconsciente, implica reconhecer um aspecto crucial da vida humana; tanto no sentido do que foi negligenciado ou reprimido, quanto do que ainda existe em potência, como possibilidade de realização. Qualquer um destes sentidos, no entanto, apontam para o entendimento das causas dos motivos humanos, para um lado de nossa personalidade importantíssimo, porém, comumente olvidado.

REFERÊNCIAS

JUNG, C.G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1983.

JUNG, C.G. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1985.

JUNG, C. G. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 1985.

LAPLANCHE, J. Vocabulário da psicanálise. Martins Fontes, 2001.

MURRAY, E. J. Motivação e emoção. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

REESE, E.P. Análise do comportamento humano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

REIS, A. O. A; LÚCIA, M. A. M; WALDIR, L. G. Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung. In. Temas básicos de psicologia, Vol. 7. São Paulo: EPU, 1984.

ROGERS, C. R. Terapia centrada no cliente. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1975.

ROGERS, C. R. Um jeito de ser. São Paulo: Epu, 1983.

ROSA, L. A. G. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1983.

SHULTZ, D. P; SHULTZ, S. E. História da psicologia Moderna. São Paulo: Cultrix, 1999.

SKINNER, B.F. Ciência e comportamento humano. São Paulo: Edart, 1974.



terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Amor

Para Schopenhauer (1819/2000), o amor teria sido um assunto filosófico relegado por muitos, até que ele resolvesse trazê-lo novamente à tona. Seu objetivo é assim o de elevar o amor ao nível da dignidade metafísica, ofuscada até então por outros autores. Nesse sentido, o amor pode ser compreendido em dois níveis distintos: um físico e um metafísico. Em sua acepção física, o amor manifesta-se como paixão arrebatadora e como instinto sexual – em outras palavras, como expressão dos impulsos e desejos corporais, isto é, como a própria vontade objetiva, o próprio querer-viver. Porém, o amor teria igualmente sua essência metafísica, expressa nas obras dos poetas e dos grandes pintores que procuraram representá-lo. É essa oposição, entre o amor na sua forma individualizada – como querer-viver – e o amor em sua essência metafísica, que caracterizará a teoria de Schopenhauer sobre o fenômeno do amor (SCHOPENHAUER, 1819/2000). É aqui, por outro lado, que a noção de processos não-conscientes desempenhará também um papel fundamental. Para o filósofo, o instinto sexual e o amor que une os seres têm por objetivo final perpetuar a espécie. Contudo, tal objetivo não é, de modo algum, perceptível diretamente pelos próprios seres. Ele age, na verdade, como um impulso cego de acasalamento, quase uma estratagema da natureza, que impele irresistivelmente a ligação entre dois indivíduos, por meio da qual será gerado um rebento; este, por sua vez, é ao mesmo tempo, produto dessa união e concretização do querer-viver da espécie. Assim, todo o enamorar-se, por mais abstrato e etéreo que pareça, enraíza-se no instinto sexual, e visa concretizar muito mais do que o desejo de duas pessoas em permanecer junto, sendo a mola que conduz a espécie à sua conservação e proliferação. Como afirma Barboza (2007, p. 229):
Em verdade, Schopenhauer defende que o casal amoroso não se formou, mas foi formado pela futura criança a nascer. Esta criança impele à união, urde o acasalamento de reprodutores saudáveis, para assim ter a maior chance possível de fazer uma bela entrada em cena, vigorosamente, no teatro da vida e da existência. O casal pensa perseguir a satisfação pessoal, mas no fundo trabalha como marionete de uma futura criança, que contribuirá por sua vez para a manutenção da espécie. O impulso sexual que anima o amor é o motor da sobrevivência da espécie, como o demonstra o seu chamado impositivo e a seriedade generalizada com que é tratada na natureza. É o assunto mais relevante de todos, inclusive na cultura, em que ele infiltra suas madeixas e arquiteta ardis tanto nos assuntos cotidianos e corriqueiros quanto nos extraordinários e elevados.
Nesse aspecto, pode-se dizer que Schopenhauer reduz toda a paixão e o amor a uma expressão da sexualidade, defendendo certo pansexualismo (ASSOUN, 1978; BARBOZA, 2007). A essência metafísica do amor estaria, dessa forma, na busca por preservar a indestrutibilidade do Homem – sendo este concebido aqui em sua acepção genérica, como a própria espécie humana – através da continuidade das gerações futuras. Para Schopenhauer, o sexo seria praticamente a meta final de quase todo o esforço humano, um elemento da maior importância na constituição psíquica dos indivíduos, objeto de preocupações e questionamentos em diferentes etapas do desenvolvimento. E quando a função de amar não é colocada em ação, quando ela falha em seu objetivo de reprodução da espécie, tende a gerar uma série de problemas para o indivíduo, como as chamadas perversões. Para o filósofo, a masculinidade e a feminilidade comportariam inúmeros graus, sendo quase impossível prever todas as possibilidades que o amor e a sexualidade nos colocam para a sua manifestação, ainda que deslocada do objetivo de continuação da espécie (SCHOPENHAUER, 1819/2000). O amor pode ser considerado assim, a principal expressão da Vontade e do querer-viver, denotando mais uma vez, a função imperiosa da Vontade sobre os indivíduos, mesmo a contrariar as pretensões intelectuais e racionais destes últimos. Mais uma vez, têm-se um campo bastante fértil para a discussão entre as teorias de Freud e de Schopenhauer.

A genialidade e a loucura

Prosseguindo com a nossa discussão sobre os fenômenos decorrentes da relação entre vontade e intelecto, chegamos ao continuum entre genialidade e loucura. Schopenhauer (1819/2005a) descreve que a genialidade e a loucura possuem um lado pelo qual perpassam fronteiras que confundem seus limiares. Tal qual o gênio recorre ao seu mundo interno para expressar sua criatividade, este também pode se isolar na abstração e fantasia, ao excluir-se do princípio de razão, acarretando um distanciamento da vida exterior e aproximando-se de uma realidade paralela no mundo das idéias. O gênio pode ser considerado, dessa forma, como louco, ainda que seja ilustre e talentoso. Portanto, deve-se tomar cuidado com todo o julgamento feito sem base sólida, ou seja, comprovada com resultados de cunho pertinente à patologia atribuída. O filósofo explicita em sua obra, o quanto é delicada a atribuição e diagnóstico da loucura, bem como suas duras conseqüências para a raça humana. O autor explica como se dá o funcionamento de um homem genial, para o qual a idéia é predominante em sua mente, o que o distancia do predomínio da racionalidade; o gênio é dominado pela febril e constante paixão do criar. Por sua vez, com esse ato de criação corre o risco de se afastar da objetividade, cedendo integralmente ao subjetivismo desenfreado, perdendo-se do contato com a sociedade. Para o homem genial não é perceptível tamanha reclusão, por estar envolvido e absorvido com suas idéias. Porém, para o mundo exterior e para o senso-comum, o gênio pode com tamanha facilidade ser considerado um ser diferenciado, e talvez, por conta disso, é visto muitas vezes como louco; o questionamento social tende a gerar assim, dúvidas nocivas à sua saúde mental (SCHOPENHAUER, 1819/2005a). È justamente neste ponto que Schopenhauer toma o devido cuidado para não problematizar mais ainda o quadro da genialidade, tratando-se, na verdade, de pessoas que apenas não se utilizam de uma lógica usual para se apropriarem, na maioria das vezes, da intuição, e assim compor suas idéias, mantendo-se na abstração. Em conformidade com esta atitude, numa conversação, o indivíduo genial não dirige diretamente à pessoa seu próprio pensamento, porque o mesmo está fixo na idéia, ou seja, no assunto que está sendo tratado. Neste caso, a preocupação é quase inteiramente com as idéias; é exatamente neste ínterim que é processado na mente do gênio a reflexão sobre o que deve ser realizado, estando ele alheio à vontade, ao tempo e ao que é externo ao objeto de estudo. No entanto, segundo Schopenhauer, é quando restrito à sua abstração que se dá a unificação entre o sujeito e a idéia como forma pura do conhecimento. Ao se abstrair do tempo, do espaço, da lógica, e, assim do princípio de razão é que o sujeito dá à idéia uma expressão concreta, na forma de objetivação perfeita da vontade (SCHOPENHAUER, 1819/2005a).
É premente compreender, contudo, que nesta objetivação da vontade que dá forma à idéia, existe um equilíbrio perfeito entre o objeto e o sujeito a ponto de não ser possível diferenciar-se um do outro, por estes se encontrarem fusionados. Pensando-se que para haver uma idéia é necessário que o sujeito a conceba, logo esta idéia perpassa o criador tomando-se parte integrante e inseparável de si; destarte, é nesta fusão que o sujeito e o objeto se entrelaçam, onde se dá vazão ao mundo como Representação. O gênio, portanto, lança seu olhar para muito além dos fenômenos, e ao atingir a Representação, passa a compreender a verdadeira essência do mundo, já não se importando com a vida cotidiana e fenomênica. Considerando-se que o indivíduo genial recorre ao seu próprio interior para extrair a Representação das coisas e muitas vezes se isola demais para obter resultados satisfatórios, ele pode como dito anteriormente, ser confundido com o louco. A comparação é feita, sobretudo, dada a semelhança entre o comportamento do indivíduo genial e do indivíduo louco. Mas, em última instância, trata-se apenas de uma parecença casual, visto que os quadros diferem bastante entre si, como veremos adiante ao nos reportarmos à loucura propriamente dita. É importante salientar que, para Schopenhauer não existe exatamente um conceito preciso que diferencie o louco do são (CACCIOLA, 1991; SCHOPENAHAUER, 1819/2005a). Já se referenciou muito do indivíduo genial para elucidar como ocorre seu proceder nas questões subjetivas e objetivas; agora se faz o momento adequado para adentrarmos os limites da loucura. A loucura tem como principal característica a ruptura da memória; esta ocorre para amenizar o sofrimento psíquico originado de vivências traumáticas e assim não amputar o ser por completo. Haja vista que no estado de loucura o que é diretamente agredido é a memória e não o conhecimento atual das coisas. Pelas lacunas que se formam entre a memória atual e a memória passada, o louco desenvolve alucinações e delírios que irão preencher o vácuo deixado pela ruptura mnêmica, e, consequentemente, o processamento delirante das informações acaba invalidando a autenticidade das mesmas Surgem as fantasias descontroladas que emergem de dentro do psiquismo do louco para tentar recompor a personalidade e o senso de identidade do sujeito; a predominância das fantasias causa um rompimento com a realidade externa, o que torna pouco confiável tudo o que diz o louco. Neste caminhar, em pouco tempo o louco é dado como sujeito desadaptado, impróprio para o convívio em sociedade. Por isso o cuidado de Schopenhauer ao se referir à loucura e à comparação com a genialidade em suas particularidades (CACCIOLA, 1991; SCHOPENHAUER, 1819/2005a). Nesse sentido, pode-se afirmar aqui um paradoxo que envolve a vontade humana como um elemento que tanto pode perturbar o intelecto quanto em alguns casos estimulá-lo. No caso da memória, por exemplo, esta pode ser intensificada pelo ímpeto da vontade, mesmo quando se trata de uma memória fraca, retendo apenas aquilo que tem valor para o afeto dominante. Desse modo, a vontade está na base da memória e um ser que fosse só conhecimento não conseguiria reter nada. A vontade é que mobiliza a associação de idéias, que faz com que a certas representações presentes liguem-se outras passadas, por meio da analogia (CACCIOLA, 1991).

O Suicídio

Schopenhauer (1819/1986) reafirma a vontade de querer-viver presente no suicídio, reforçando que todo aquele que tem o desejo de se suicidar ainda assim está se utilizando do querer-viver, logo, sendo escravo desse desejo. Este querer-viver, Schopenhauer o define como sendo predominante em qualquer ser e mesmo que se deseje o querer-morrer, está se pondo fim apenas a vida individual porque a vida em si continua viva na Vontade Universal. Somos levados a pensar, pela representação de mundo que viemos adquirindo ao longo dos tempos, que todo aquele que não quer continuar a viver, deve tirar a sua própria vida, sendo isto o resultado de sua insatisfação frente ao ato de permanecer vivo. Através da obra de Arthur Schopenhauer, tomamos conhecimento do fato que circunda o ato de suicídio. Este está intimamente ligado com o querer-viver que nada mais é senão a expressão da Vontade Universal fragmentada na vontade individual do ser. Uma vez que esta vontade individual objetivada pelo corpo humano deixa de ser confortável a este indivíduo por qualquer causalidade, podendo ser por uma doença ou um revés financeiro os quais levam o indivíduo a frustrações e sofrimentos; com estas intempéries, ocorre que não é mais interessante para ele continuar nesta trajetória, então tem o desejo de por fim a esta vida, ou seja, desistir de submeter a vontade de querer-viver ao julgo deste corpo para se juntar a Vontade Universal. (HUISMAN; VERGEZ, 1988). Por isso ainda que o indivíduo opte pelo suicídio pode-se afirmar que está presente em si o querer-viver. Apenas não está presente o querer-viver na vontade- individual, permanecendo, porém, intacto na Vontade-Universal. Ora, o indivíduo deixa de viver nesta vida individual para continuar este querer-viver na Vida Universal. Constata-se dentro da visão Schopenhaueriana que o suicídio é uma afirmação intensa da Vontade, pois o indivíduo desejaria viver; o que ele não suporta é a renuncia aos gozos da vida à medida que os mesmos lhes são privados. Há então o desejo de negar a vida pelo sofrimento causado. Nesta condição, o indivíduo renuncia a vida, “esta vida”, mas ele não renuncia o próprio “querer-viver” (HUISMAN; VERGEZ, 1988). Para Schopenhauer (1819/1986), o suicídio é um ato inútil que apenas impede o indivíduo de transpor-se aos males que o circundam e que paralisam a realização de seus desejos em suprimir as inferioridades transcendendo-as em experiências bem sucedidas, reafirmando, desse modo, o desejo de manter vivo o querer-viver individual. Segundo o prisma do Autor a vida é tida como infalível e para sempre, assim como é inerente ao querer-viver; lembra-nos ainda que, na mesma proporção, o sofrimento também é inerente à vida, concluindo que o suicídio não põe fim à vida. Neste caso, apenas é destruído desnecessariamente o fenômeno particular o qual nem por um instante abala a estrutura da Vontade, por ser ela inatingível. O ato do suicídio é revelado pelo indicador de que o indivíduo está numa luta terrível contra o querer-viver que está em si, desejando não estar em si mesmo para não viver o que o atormenta em seu mundo. Deste proceder observa-se que nestes casos de suicídio prevalece o aniquilamento do corpo para suprimir a dor. O que não se tem em conta é que a Vontade Universal não tem relação com o tempo, com espaço ou causalidade, está presente independentemente de qualquer manifestação individual, na qual nada interfere, porque apesar da destruição do fenômeno a Vontade permanece intacta. Contudo, a fonte da eterna libertação que está contida na Vontade Universal está presente na vontade-individual, na devida proporção que torne possível, através dos fenômenos objetivados pelo corpo, a manifestação desta Grande Vontade, ou seja, a concretização da Vontade Universal. Esta vontade-individual é que é suprimida quando da morte, se esvaecendo, com isso, no Grande Todo, na Vontade Universal, tal como a gota de água isolada que então retorna para mar e se confunde em meio a todas as outras, perdendo sua individualidade (HUISMAN; VERGEZ, 1988). Schopenhauer deixa sua mensagem que diz: “Desvendar o enigma do mundo, no próprio mundo e não fora dele” (CACCIOLA, 1991, p. 25).

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O valor da decisão

É necessário que eu me conheça? Por quê? Para quê? A princípio, parece que a vida está transcorrendo de forma produtiva e não há motivo para qualquer preocupação, ou seja, que maravilha! A vida é o que é! Ainda há tempo para (“o depois”). Quando estiver pronta, vou tomar novos rumos, vou me conhecer. Contudo, a vida se impõe, e torna-se impossível não traçar “uma diretriz” para sair da gama de múltiplas opções. Então se percebe que tantas oportunidades parecem existir, mas continua-se no lugar onde sempre se esteve. Oh! Céus... Um dia encontro um caminho para mim! A vida segue... perpetua a sensação da ausência de um sentido que justifique a inércia, a ilusão de uma busca... A busca... do quê? Talvez, num primeiro momento, a busca seja só uma tentativa de convencimento de que se está atuante. Porém, o apego ao sei lá o quê, mantém a vida exatamente imóvel, fixa ao provisório. É a auto sabotagem mais convincente que o nosso inconsciente concebe. Ainda bem que existe “o destino”, este não obedece a normas e ignora as leis dos homens. Quando se apresenta, não demora nada, para se instalar e cobrar seu ônus. Tudo o mais vem definitivamente encabeçando o caráter provisório da vida. Resta saber o quê, então, pode-se fazer! Mais tempo, mais tempo, você pede em vão, enquanto o seu esforço consiste em não racionalizar seus desejos, você diz a si mesmo, “está bem assim”. Será isso mais um distanciamento do caminho para a escolha da vida almejada? Sempre que se tem a sensação de que agora é o momento da escolha certa, apenas parece ser, porque novamente as dúvidas atrapalham a tarefa de decidir, de anular outras chances de escolha. O caminho não transcorre de forma afiançável, não promove quaisquer benefícios, o lugar ou o espaço ainda são os mesmos, e de tão familiar apresenta-se como uma expressão de vida confortável e, assim, como uma aparente nova realidade. Contudo permanece no processo de crença, no qual a razão não impera, está fora dessa questão, a da validação de uma perspectiva futura, com dados concretos, objetivos, tais como: - dois mais dois são quatro estes dados parecem longínquos desse resultado tão objetivo. Perceber sua vida é ganhar consciência da maneira como é conduzida, é encontrar a saída, mas, se preferir viver na constante espera de situações que venham a lhe permitir dispor de condições, para sua libertação, poderá se esquecer de quem é, e se ocupar com os desejos de outrem, ouvindo indubitavelmente o outro a lhe dizer o que deve ou não fazer. Dificilmente decidirá o que quer pra si. Pensar sobre si mesmo é forçar-se a cumprir suas próprias exigências. O que falta para criar asas e voar? Eu vou dizer: - perder o medo de se perceber como é. Não irá adiante enquanto não se cansar de ser o que não é. Pra que mentir pra si mesmo. Por quanto tempo mais, irá aguentar esta condição? O preço é bem alto, a vida é uma ciranda que não espera para libertar quem não faz nada para entender que é preciso trabalhar seus medos, conflitos, inseguranças e pôr fim às suas amarras. São notórios os projetos inacabados, tarefas ininteligíveis e indignas, tornando-se barreiras intransponíveis para o progresso dessa existência. Perguntar-se quais são os projetos inacabados e intransponíveis é um simples exercício. Sim, é um simples exercício, mas que talvez tenha o poder de mudar esses mesmos percursos tidos como impróprios. É possível que tais projetos possuam facetas valorosas capazes de mobilizar os recursos verdadeiros e abrir novos horizontes, mas há ainda um longo caminho a ser trilhado até seu adequado reconhecimento. Para aquele que não está habituado com o processo de tomada de decisão, não sabe o que fazer para erguer a bandeira do sim ou do não. Custa-lhe muito escolher entre o certo ou o errado, custa-lhe vencer o poder da paralisia. Como ocorre com pessoas que levam suas vidas na inconsciência de seu poder de decisão, não é de admirar que não estejam aptas a pensar na possibilidade de novas escolhas. A vida se arrasta sem deixar lugar para atitudes concernentes. Quem pode mais, faz menos, ou, será que me engano? Essa é a temática que leva a uma reflexão bastante construtiva. Parece que ninguém gosta de perder tempo praticando seus potenciais, ou melhor, julga que isso é perda de tempo. As atitudes não se alteram sem muito trabalho ser feito. Para lapidação é necessário muito empenho e determinação. Por isso é mais razoável eximir-se de todo o complexo de culpa, assim como é mais fácil ir ao Shopping Center comprar, comprar, seja lá o que for, traz alívio e bem estar. Qual é o seu valor? ... “Pense bem”. A busca pelo caminho da sinceridade é longa, talvez maçante, nem sempre possuem atrativos, pois ela requer paciência e coragem. Aquele que se quer bem, faz por onde e vai além, não importa o quanto terá que se desdobrar para vencer suas limitações e chegar aonde quer chegar. É provável que nem todos tenham facilidade em agir assim, é menos complicado para os que já têm consciência, ou uma semiconsciência de suas potencialidades. Costumo dizer que todo aquele que tem consciência executa a ação, não se prende a limites ou entraves, nesta condição, já é livre de condicionamentos. É preciso também submeter seus desejos à razão e transformá-los em dados reais, ou seja, colocar em prática suas idealizações, não se ocupar simplesmente com fantasias e deixar ao acaso suas responsabilidades. Deve aproveitar as oportunidades que se apresentam e se satisfazer com suas ações concretizadas. A frustração cede lugar à autorrealização. “Quem pode, pode”! Assim diria aquele sujeito que não se concebe autossuficiente para encarar a insolidez de suas atitudes. Difícil organizar a vida quando não existe equilíbrio entre a fantasia e a realidade, ou melhor, quando se mistura dados insuficientes de realidade com excesso de devaneios. E o que é um devaneio senão a necessidade de sonhar-se acordado, talvez, como gratificação pela inexistência de objetivos mais conscientes?

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Esclarecendo o que é a avaliação psicológica

Embora muitas pessoas tenham acesso hoje à psicoterapia, ou sejam avaliadas em entrevistas de emprego e outros contextos, muitas não compreendem o sentido de certas práticas realizadas pelo(a) psicólogo(a) no sentido de avaliar seu comportamento. Apesar disso, as avaliações psicológicas são comuns na prática de um profissional da Psicologia. Tais avaliações são empregadas com diversas finalidades, seja num contexto clínico, educacional, institucional ou outros. O psicólogo dispõe atualmente de diversas estratégias avaliativas, dentre elas, as várias abordagens teóricas da Psicologia (como a psicanálise, a psicologia cognitiva, etc.), os métodos psicométricos (como escalas, inventários e check-lists), a entrevista psicológica, os testes projetivos e as medidas e classificações nosológicas (como o DSM). Sob esse aspecto, o conceito de avaliação psicológica mostra-se de uma vasta abrangência semântica, referindo-se a todo tipo de estratégia utilizada pelo psicólogo quando da apreciação de demandas pessoais ou grupais num determinado contexto. Já o termo psicodiagnóstico caracteriza uma forma específica de avaliação, com propósitos clínicos, e que, portanto, não inclui todos os modelos avaliativos de diferenças individuais (CUNHA, 2000a). A palavra diagnóstico é proveniente do grego diagnõstikós, que se refere à capacidade de discernir, ou seja, tomar contato com o que muitas vezes está oculto ao olhar despreparado, que só através do conhecimento se tornará hábil para detectar o que não foi falado, mas, que de alguma maneira foi dito. (ANCONA-LOPEZ, 1984). Na psicologia, o termo empregado é o de diagnóstico psicológico, que é voltado para uma compreensão neste âmbito, podendo então ser conhecido como psico-diagnóstico, ou ainda como diagnóstico da personalidade, estudo de caso, etc Na definição de Cunha (2000a, p. 23) o psicodiagnóstico “é um processo que visa a identificar forças e fraquezas no funcionamento psicológico, com um foco na existência ou não de psicopatologia.” Segundo Arzeno (1995) o psicodignóstico é um recurso imprescindível, cujo sucesso depende da escolha adequada das técnicas a serem utilizadas e de um emprego eficaz das mesmas. A concepção mais comumente usada da personalidade, a concepção psicodinâmica, propicia vários exemplos de como o processo psicodiagnóstico pode ser útil. Ela parte do conceito de que a personalidade possui um aspecto consciente e outro inconsciente, tendo uma dinâmica interna específica, na qual existem ansiedades básicas que mobilizam defesas mais primitivas e outras mais evoluídas, que cada indivíduo possui uma configuração de personalidade única e inconfundível, que tem um tipo de inteligência que pode manifestar-se ou não segundo existam ou não interferências emocionais. A concepção psicodinâmica também parte do pressuposto de que as emoções e impulsos podem ser mais intensos ou mais moderados, que o indivíduo pode controlá-los adequada ou inadequadamente, existindo desejos, inveja e ciúmes entrelaçados constantemente com todo o resto da personalidade, e que os impulsos libidinosos e tanáticos lutam para ganhar primazia ao longo da vida, no qual o sadismo e o masoquismo estão sempre presentes em maior ou menor escala. Considera-se ainda o nível de narcisismo, que pode mostrar-se baixo demais, adequado ou alto demais e isto incide no grau de submissão, maturidade ou onipotência que demonstre; que as qualidades depressivas ou esquizóides que predominarem como base da personalidade podem ser razoáveis ou sofrer um aumento até transformarem-se em um conflito que atrapalhem ou alterem o desenvolvimento do indivíduo (ARZENO, 1995). A análise das defesas que uma pessoa tem usado ao longo da vida, avalia até que ponto elas podem ou não estar sendo benéficas, dependendo do contexto – e isto sem que o sejam em si mesmas prejudiciais. Outro conceito importante é o de estrutura de base da personalidade; nos casos de predomínio esquizóide ou depressivo instalam-se outras estruturas defensivas de tipo obsessivo, fóbico ou histérico. Os fatores hereditários e constitutivos desempenham um papel muito importante, razão pela qual não é recomendável trabalhar exclusivamente com a história do indivíduo e o fato desencadeante da consulta, mas estar aberto à possibilidade de incluir outros estudos complementares; (médico-clínicos, neurológicos, endocrinológicos, etc.). Embasado nestes indicativos pode-se perceber o quanto o psicodiagnóstico é vantajoso por uma série de razões. Em primeiro lugar, ele possibilita uma compreensão mais ampla das causas do quadro psicopatológico, endossado, dessa forma, o trabalho do psicólogo e protegendo o cliente de eventuais estereótipos, originados, muitas vezes, de uma avaliação inadequada. Ademais, quando efetuado com precisão, o psicodiagnóstico garante também maior segurança ao psicólogo, em seu compromisso ético e clínico de conduzir um trabalho devidamente fundamentado. Por fim, deve-se ressaltar o fato de que, sendo um procedimento passível de investigação científica, o psicodiagnóstico pode ser aperfeiçoado sempre, fornecendo ao profissional de Psicologia subsídios seguros para que sua avaliação não permaneça restrita a especulações e impressões demasiadamente subjetivas. Isto terá conseqüências ainda no momento de explicitar ao cliente seu estado atual e seu prognóstico; situação esta que exigirá do psicólogo certa objetividade e clareza, além de um conhecimento adequado dos recursos psicológicos do cliente, de maneira a lhe relatar somente o necessário para a condução do tratamento, dentro das possibilidades atuais e limites deste último ou de seus responsáveis (CUNHA, 2000a).
Em geral, o processo psicodiagnóstico é desencadeado em vista de um encaminhamento proposto durante uma consulta psicológica. Via de regra, o cliente ou seus responsáveis relatam ao psicólogo uma queixa, que constitui o motivo manifesto da ida ao consultório ou à clínica psicológica. Tal motivo, baseado em certo número de sintomas percebidos pelo cliente, representa o ponto de partida para o psicólogo, ainda que o problema evidenciado seja de natureza bem diferente da que o indivíduo tende a imaginar quando resolve buscar ajuda. Os sintomas podem indicar para o indivíduo que algo está errado em seu funcionamento psicológico, mas a percepção destes varia de acordo com os recursos pessoais, as capacidades de enfrentamento e as defesas psicológicas de que ele dispõe. Para entender os fatores que desencadearam determinado sintoma, bem como as possíveis fantasias e percepções distorcidas do cliente a respeito de seu atual quadro psicológico, cabe ao psicólogo uma investigação acurada de sua história pregressa, isto é, de sua história anterior à vinda ao atendimento e das situações e fatores circundantes ao aparecimento dos sintomas – em outras palavras, o contexto da queixa ou a pré-história do caso (CUNHA, 2000b; OCAMPO, 1981). Arzeno (1995) divide as etapas do procedimento diagnóstico em sete momentos: 1°) O período entre a solicitação da consulta pelo cliente e o encontro com o psicólogo; 2°) As primeiras entrevistas com o cliente, onde são esclarecidos os motivos manifestos e latentes da queixa, as ansiedades, defesas, fantasias de cura ou doença, a história do indivíduo e de sua família; 3°) Momento em que se começa a refletir sobre o material coletado previamente e as hipóteses iniciais, de forma a planejar os passos do processo e os instrumentos de avaliação a serem utilizados; 4°) Efetivação da estratégia diagnóstica elaborada no terceiro momento; 5°) Estudo do material colhido por meio dos procedimentos diagnósticos. Trata-se de trabalho árduo e que frequentemente desperta resistências, as quais devem ser superadas pelo profissional; 6°) Entrevista de devolução das informações para o indivíduo ou para sua família; 7°) Elaboração do informe psicológico do caso, quando houver solicitação. Um aspecto importante a ser salientado quanto ao psicodiagnóstico é a relação terapeuta-cliente. Esta se mostra fundamental para a realização de uma avaliação adequada e eficiente do caso e deve ser trabalhada com o cliente desde o início do processo. Não se trata apenas de uma relação no nível da expressão verbal de idéias e sentimentos conhecidos, mas também de uma interação a partir de dados mais profundos, oriundos do inconsciente, incluindo gestos, atos falhos, atuações, fantasias ou mesmo a linguagem corporal, que pode funcionar às vezes de maneira sutil, mas extremamente reveladora. De qualquer modo, o passo essencial a essa forma de “escuta” é a abertura do psicólogo às experiências do indivíduo e às suas próprias durante o processo, por meio da qual a sua posição de especialista é, até certo ponto, relativizada, permitindo a emergência de conteúdos ainda não integrados à consciência, reveladores não só da interação entre os dois num contexto terapêutico, como também das reações que o cliente tende a suscitar nas pessoas em geral, ao longo das relações pessoais que estabelece (CUNHA, 2000b). Portanto, o contexto sócio-cultural e familiar deve ocupar um lugar importante no estudo da personalidade de um indivíduo, já que é de onde ele provém. Quando o objetivo do estudo é outro - trabalhista, educacional, forense, etc. -, o psicodiagnóstico clínico também serve de base para as conclusões necessárias nessas outras áreas, e nestas, os fatores sócio-culturais são ainda mais evidentes. O estudo da personalidade é, na realidade, um estudo de pelo menos três gerações, num contexto étnico-sócio-cultural. Daí a importância de saber claramente qual é o objetivo do psicodiagnóstico, o que vamos realizar, de forma que, antes de iniciar a tarefa, o psicólogo possa esclarecer com o consultante qual é o motivo manifesto e mais consciente do estudo e intuir qual seria o motivo latente e inconsciente do mesmo, além de como as questões étnicas, culturais e sociais podem estar refletindo o diagnóstico estipulado (ARZENO, 1995). É importante dedicar a isto todo o tempo que for necessário e não iniciar a tarefa se o consultante insistir na idéia de que o psicólogo o faz por mera curiosidade, já que isso se refletirá negativamente no momento da devolução de informação. Cabe ao psicólogo observar, perceber, escutar com tranqüilidade, aproximar-se sem ser coercitivo, inquiridor, todo-poderoso. Somente assim se criam o silêncio necessário e o espaço para que o paciente revele sua intimidade, ou senão, denuncie os aspectos incoerentes e confusos de seus conflitos. (RAYMUNDO, 2000, p. 39)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Psicoterapia Psicodinâmica Breve: saiba mais

OS PRECURSORES

Os precursores em PB, a partir da observação de seus primeiros tratamentos, constataram que é possível a construção de uma abordagem terapêutica alicerçada no tripé: Foco, Estratégia e Objetivo. O que se pretende não é fazer um estudo aprofundado e sim focado em tempo limitado, utilizando-se, para isso, de metodologias e estratégias específicas. Dentre os antecessores da moderna PB, encontramos as seguintes contribuições:

FREUD: é possível estipular semelhanças entre a forma de trabalho desenvolvida por ele e algumas propostas da PB atual como, por exemplo, a remissão de sintomas através de uma análise mais ativa. Freud também reconheceu a necessidade de se abreviar o tratamento, mas não desenvolveu meios para isso.

FERENCZI: referia-se à técnica ativa, baseada na intensificação do processo transferencial.

RANK: defendia a tese da ansiedade primordial e do trauma do nascimento. Num segundo momento, ele fala das questões ligadas à dependência e independência, separação e ligação emocional. Sua grande contribuição a PB, no entanto, veio com o conceito de término da análise e o conceito de “Will Therapy”, ou motivação para mudança.

ALEXANDER & FRENCH: seu trabalho é considerado o marco inicial de PB. Criaram os conceitos de experiência emocional corretiva e o “Princípio da Flexibilidade”.

MESSER & WARREN: trouxeram contribuições importantes, como a mudança da ênfase no intra-psíquico para a psicologia interpessoal e relacional. Enfatizaram a importância da experiência real do paciente e as PB ecléticas.

AS PB PSICODINÂMICAS MODERNAS

Dada a grande quantidade de autores, MESSER & WARREN classificam as diferentes abordagens teóricas e técnicas de PB como a seguir:

 Modelo estrutural ou do impulso

MALAN estabelece que haja uma hipótese psicodinâmica de base, a partir de um diagnostico que inclui entrevistas e testes psicológicos, com o intuito de identificar o conflito primário. Sobre a hipótese diagnostica psicodinâmica de base se planeja o trabalho terapêutico, que é feito através da intervenção ativa e seletiva, e tem tempo e objetivo delimitados.

SIFNEOS desenvolveu a PB provocadora de ansiedade, que é dirigida a pacientes criteriosamente selecionados com problemas fundamentalmente edipianos. A partir da hipótese psicodinâmica o terapeuta adota uma postura bastante ativa, que visa levar o paciente a se defrontar com seus conflitos.

DAVANLOO propôs uma técnica altamente ativa de confrontação e manutenção de foco, que se utiliza, desde o inicio, de interpretação da transferência, das defesas, dos sonhos e das fantasias, e da construção genética. Resulta que a utilização dessa técnica depende da existência de uma SÓLIDA aliança terapêutica. As críticas ao modelo estrutural incluem o fato de que aquilo que estes autores definem como uma postura mais ativa, resvala, por vezes, em uma atitude autoritária.

 Modelo relacional

MESSER & WARREN classificaram como modelo relacional de PB uma filosófica da ciência que inclui o reconhecimento da natureza contextualizada do conhecimento e da pluralidade dos pontos de vista refletidos na psicanálise, gerando uma nova visão da teoria da personalidade, da psicopatologia e da técnica psicoterápica.

Este modelo dá ênfase nas relações objetais como clinicamente centrais; nessa visão, a unidade básica de estudo não é o indivíduo como uma entidade separada, cujos desejos se choca com a realidade externa, mas um campo interacional dentro do qual o indivíduo surge na luta para fazer contato e para se articular. O modelo relacional foi criticado por não se preocupar tanto com a técnica em si (mas com a interação cliente-terapeuta) e por dificultar a utilização de métodos tradicionais de pesquisa.

 Modelo integrativo ou eclético

Este modelo baseia-se na tendência a integrar técnicas e conceitos de diferentes tradições terapêuticas visando aumentar a eficiência e o espectro de aplicação.

MANN unifica em sua teoria os principais constructos dos modelos anteriores (impulso, ego, objeto e self), considerando-os complementares. Sua psicopatologia é também de abordagem integral, seguindo a perspectiva do desenvolvimento; mas ela generaliza para todas as neuroses um tipo de conflito básico e universal e a técnica daí decorrente é radical e não resulta numa flexibilidade e aplicação mais amplas.

Os modelos posteriores ao constituído por MANN tentaram a integração através da procura de fatores comuns nos diversos modelos, no ecletismo técnico (ou seletividade) e nos esforços de integração teórica. Neste último quesito, sobressai o trabalho de PROCHASKA com sua “terapia transteórica”, fundamentada numa análise comparativa dos maiores sistemas psicoterapêuticos. O modelo eclético tem sido bastante criticado pela utilização de termos e conceitos, fora de seu contexto de origem (dando margem à modificação de seus significados ou a uma mistura indiscriminada), mas tem sido útil na diminuição do dogmatismo e exclusivismo teóricos.

Os autores sul-americanos

O desenvolvimento das PB em países sul-americanos reflete o contexto cultural e a urgência das demandas. Esta situação exige flexibilidade no trabalho terapêutico e adequação às necessidades do paciente.

KNOBEL acentua questões sociais e econômicas em seu trabalho e uma constante preocupação com a viabilidade da indicação terapêutica, que deve ser escolhida de forma realista. Segue um diagnóstico holístico, a partir de uma gestalt bio-psico-social do paciente num determinado momento de sua vida.

Psicopatia: mitos e verdades

O PSICOPATA NUMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

A psicopatia tem sido encaixada, ao longo do tempo, numa infinidade de nomenclaturas, mas a grande verdade é que, apesar das várias mudanças ocorridas na definição do termo, pouca coisa nas conceituações atuais é realmente nova quanto à descrição do indivíduo psicopata. Mesmo as definições mais recentes como transtorno de conduta, transtorno de personalidade anti-social, sociopatia etc. apenas atualizam o nome, não o fato em si, o fenômeno. As palavras utilizadas para se designar o indivíduo psicopata sofreram alterações no decorrer dos anos, como resultado das próprias mudanças sócio-culturais, que culminaram gradativamente numa forma mais polida, mais técnica e menos associada ao senso-comum, de referir-se à Psicopatia. Inicialmente, por volta de 1800, eram empregados os termos insanidade moral, loucura moral, demência moral, estados de degeneração etc. Hoje, o fato de nos referirmos ao psicopata como alguém portador de um transtorno anti-social, não modifica em nada suas características, as quais permaneceram as mesmas desde sempre, ainda que possamos considerar a nossa sociedade atual uma grande “fazedora” de psicopatas (PIROLI, 1997; SHINE, 2001).

A descrição do psicopata, em termos do seu comportamento e outros elementos observáveis, é igual tanto para a psiquiatria quanto para a psicanálise. A diferença fundamental reside no fato de que, enquanto as concepções clássicas (ou psiquiátricas) permanecem atreladas ao observável e não discriminam o aspecto individual daquele que é universal / genérico, a psicanálise propõe-se justamente a devassar o indivíduo psicopata, suas motivações internas, sua vida psíquica. Dessa maneira, como afirma Piroli (1997, p. 118):

O embasamento que as concepções psicanalíticas nos oferece (sic) não modifica em absoluto a descrição clássica do comportamento de um psicopata, porém permite a discriminação do comportamento específico desses indivíduos. É com o “porquê” do comportamento que temos essa discriminação.

As principais características do psicopata na concepção psicanalítica variam segundo diferentes autores, sendo possível, no entanto, como propõem Piroli (1997), resumi-las todas de acordo com certas colocações gerais:

- o psicopata é um perverso e a psicopatia se insere, portanto, na categoria das perversões;
- seu comportamento desregrado e seu desrespeito às normas derivam de uma transgressão à lei do pai (estabelecida pelo complexo de Édipo);
- o psicopata é portador de um ego clivado, sendo que uma parte dele mantém contato com o mundo externo, dando a aparência de normalidade e através da qual ele se mostra muito sedutor e agradável, porém, de outro lado, seu ego está também muito ocupado com ataques e defesas fantasiosas, o que o faz sempre desconfiado e perseguido, não conseguindo manter seus relacionamentos de forma duradoura e evitando ocasiões públicas, por não conseguir lidar com muitas pessoas ao mesmo tempo;
- sua capacidade em utilizar os outros e seu parasitismo advém do fato de que as pessoas são consideradas por ele como um prolongamento de si mesmo, servindo para realizar seus desejos. Em contrapartida, é negado todo e qualquer valor aos outros;
- ele é agressivo, brutal, criminoso por estar, a todo o momento, ocupado com suas fantasias onipotentes de ataque e defesa;
- sua incapacidade em experimentar culpa, do ponto de vista consciente, provém de um superego extremamente arcaico e impiedoso. Mas inconscientemente, a culpa do psicopata é imensa e ele a projeta nos outros, culpando-os por suas próprias ações;
- o psicopata não sente amor, havendo um predomínio de sentimentos hostis, resultante de um fracasso em suas primeiras relações objetais e na função de reparação;
- não aprende com a experiência, pois não há “tempo” para buscar o mundo externo, de tão imerso que o psicopata se encontra em suas fantasias onipotentes de ataque e defesa persecutórias;
- ele atua ao invés de simbolizar, pois não é capaz de diferenciar o símbolo do objeto (ele está preso na equação simbólica) caracterizando assim um pensamento deficitário.

OS PAIS DO PSICOPATA

Os pais de um psicopata são, em geral, pessoas incapazes de elaborar perdas e tendem, normalmente, a estabelecer entre si e com outras pessoas, um vínculo mal integrado dentro de uma relação sufocante e simbiótica. Por não conseguirem elaborar o luto, característico das situações de perda, tornam-se incapazes, consequentemente, de auxiliar o bebê a elaborar seus primeiros lutos. Os pais do psicopata relacionam-se com ele de forma excessivamente ambivalente, ora considerando-o um prolongamento de si e tratando-o com mimo e conivência exagerados, ora tratando-o de maneira fria e distante. Quase sempre, o psicopata é o tipo de bebê que não foi realmente desejado, principalmente por ter sido uma possível ameaça à estabilidade da relação dual marido-esposa (PIROLI, 1997).

As trocas afetivas entre o casal e entre estes e o bebê são minguadas, supervalorizando-se tudo o que é superficial e externo, como bens materiais. Estes aspectos são aos poucos internalizados como valores pela criança. Os pais do psicopata tendem também a refletir muito da nossa sociedade atual, que vive hoje uma crise intensa e perturbadora no campo familiar, e uma ênfase cada vez maior no ter ao invés do ser. Desse modo, o psicopata cresce, não raro, dentro de relações familiares permeadas pela hostilidade, ciúme, promiscuidade, irresponsabilidade, relacionamentos extraconjugais e onde o casal se comporta como pessoas solteiras, cada qual preocupado com seus próprios interesses. Nessa situação toda, o filho assume o papel doloroso de servir como palco e receptáculo das identificações projetivas dos pais (SHINE, 2001).

A mãe do psicopata assume, geralmente, características quase autísticas (isto é, auto-centradas, egocêntricas), estabelecendo uma relação de dependência e simbiose com as pessoas, o marido e também com o filho. Ela exige assim o amor e a atenção que não teve do marido ou dos outros do seu próprio filho, visto como uma mera extensão sua. Ela pode até ser muito amorosa, mas esse excesso de amor, enquanto resultado do amor que ela tentara depositar em vão no marido, sufoca a criança e apresenta a ela um pai inconsistente, fraco, débil, desvalorizando-o, a partir da criação de um conluio com o filho. A mãe do psicopata incita este desde cedo à burla da lei do pai (PIROLI, 1997).

Outra característica da mãe do psicopata é sua falha na função de reverie, que consiste na capacidade de metabolizar angústias, desconfortos e outras sensações insuportáveis para este bebê, devolvendo-as suficientemente modificadas para que o bebezinho as possa suportar. A mãe do psicopata não só devolve a ele suas identificações projetivas, tal qual foram enviadas, como ainda introduz nele as suas próprias identificações. Isto gera um extremo horror na criança e uma sobrecarga no seu psiquismo. A única solução visualizada pelo mesmo é a da onisciência e onipotência, que irão caracterizá-lo dali por diante. Também advém daí a sua condição de constante ataque e defesa ao mundo externo e sua persecutoriedade. O indivíduo cria assim uma forma megalômana de funcionamento mental, onde a realidade é negada e as condições de bem e mal, certo e errado, não existem como estipuladas convencionalmente. Ao atuar, por meio do crime, ele alivia dores psíquicas insuportáveis e insustentáveis (PIROLI, 1997).

Por sua vez, o pai do psicopata é o indivíduo tipicamente autoritário e rígido, despótico e narcisista, que impõe de maneira severa sua lei, sendo assimilado pela criança como uma autoridade mágica, que embora seja sempre burlada pelo psicopata, é, de outro lado, sempre reconhecida por ele. Mas esse pai também pode ser o contrário, aquele do tipo conivente e indiferente, o pai desprezível, envolto na drogadição, no alcoolismo, num histórico de furtos ou de delírios mais graves. Em ambos os casos, é cobrada do filho uma postura sempre perfeccionista, onde o psicopata não pode errar nunca. Se ocorrerem falhas, elas serão negadas, ocultadas ou severamente castigadas. Daí a maior importância atribuída pelo psicopata à aparência e à mentira do que à verdade.

PSICOPATIA E SOCIEDADE

A questão da psicopatia passa necessariamente pela do tratamento. É possível tratar um psicopata? Ou a sociedade deve simplesmente mantê-lo aprisionado e longe de todos os outros? Independentemente das possibilidades de intervenção clínica da psicopatia, que serão também abordadas neste trabalho, o tema é de relevância por si só enquanto reflexão crítica sobre nossa sociedade. Talvez o psicopata não seja unicamente fruto da sociedade, mas esta pode ou não aprender a lidar com ele, o que envolve, inegavelmente, uma questão ética. Como diria Shine (2001, p.131): “Lidar com o psicopata é lidar com a problemática ética da conduta”.

Diante de um indivíduo tão violento ou inescrupuloso como o psicopata, um “demente moral” como o tratavam as definições clássicas, ficamos cara a cara com as nossas próprias tendências psicopáticas. Embora lutemos veementemente contra os horrores da criminalidade e da violência cometidas pelo psicopata, não podemos negar que de certa forma suscitamos isso como parte de nossa sociedade, o que se pode observar nos filmes, seriados de televisão e no interesse de muitas pessoas pelos casos de assassinos seriais. Como nos fala Jung (1946/1990, p.17):

A sensação de todo crime provoca o interesse apaixonado pela perseguição e julgamento do criminoso, demonstrando que todo mundo, desde que não seja insensível ou apático, é excitado pelo crime. Platão já sabia que a visão do feio provoca o feio na alma. É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma em mal, na medida em que acende o mal na própria alma. O assassinato acontece, dessa forma, dentro de cada um e de todos. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção.

Assim, além da questão ética que a psicopatia nos coloca perante a clínica, está uma preocupação no sentido de que as tendências anti-sociais deixem de proliferar. Hoje tem se falado muito numa “psicopatia comunitária” ou “subcriminal”, atentando para o fato de que o psicopata nem sempre é aquele que vemos nos filmes, que comete crimes e mata inúmeras pessoas. Ele também pode ser o vizinho ou o colega de trabalho, que sorrateiramente e sem piedade, anula as chances de crescimento profissional ou o bem-estar dos que estão à sua volta. Psicopatas com habilidades de manipulação e suficientemente inteligentes podem adentrar uma empresa sem grandes esforços e passarem despercebidos enquanto tais. Na verdade, a aparência de certo grau de inteligência e o charme e sedução com que atua, pode inclusive ser determinante na aceitação do psicopata como um candidato ideal (SHINE, 2001).

Tais aspectos nos remetem, de um modo ou de outro, à nossa maneira de ser em sociedade. Não estaríamos privilegiando o externo e o superficial além da conta, e olvidando assim características mais duradouras? Se um psicopata pode adentrar livremente uma organização e angariar sucesso e reconhecimento profissional tão facilmente, à custa do sofrimento alheio, então o que esperar de nosso meio social? Isso pode ser agravado ainda se consideramos a tolerância excessiva, conivência e falta de compromisso das autoridades brasileiras no que diz respeito ao fenômeno da impunidade.

Alguns autores têm chamado a atenção para o fato de que as condições de trabalho em nosso mundo moderno parecem propiciar, de certa forma, a ascensão do psicopata. Trata-se de um meio fragmentado, individualizado e caracterizado pela competitividade extrema, onde o que mais importa é a forma como o indivíduo irá conduzir sua imagem, gerenciando-a no sentido daquilo que é esperado frente às demandas do mercado. Isso tudo desloca a energia das pessoas, que era antes dirigida à construção do caráter e de valores éticos humanistas, para uma realidade profissional que é em si mesma uma fazedora de psicopatas, visto serem essas condições as mais favoráveis para que ele exponha seu narcisismo, explore os demais e realize suas fantasias megalômanas (PIROLI, 1997; SHINE, 2001). Um exemplo claro das catástrofes geradas e do perigo que ronda a possibilidade de crescimento profissional e social de um psicopata, foi a ascensão de Hitler ao poder. Entre os políticos é possível encontrar, não raro, indivíduos claramente psicopatas (JUNG, 1946/1990).

REFERÊNCIAS

HILLMAN, J. O direito de permanecer em silêncio. Disponível em: . Acesso em 29 de set. 2007.

PIROLI, Kátia Silvana. Personalidade psicopática: um estudo sobre sua estrutura psíquica e seu funcionamento. 1997. 213 f. Dissertação (Mestre) - Curso de Psicologia Clínica, Universidade Guarulhos, Guarulhos, 1997.

JUNG, C. G. (1946). Aspectos do drama contemporâneo. São Paulo: Vozes, 1990.

SHINE, S. K. Psicopatia. Rio de Janeiro: Casa do Psicólogo, 2001.