segunda-feira, 21 de março de 2011

O inconsciente na psicoterapia (Parte Um)

O uso da psicoterapia como forma de tratamento das neuroses, seguiu um desenvolvimento marcado por diversas mudanças significativas e específicas, no qual o conceito de inconsciente desempenhou um importante papel, ao direcionar o processo de análise para dimensões mais profundas da psique e ao sugerir que as causas dos sintomas apresentados pelos pacientes iam muito além do que uma visão superficial, no nível da consciência, podia revelar. Ao versar sobre a evolução da psicoterapia e sobre o valor da noção de inconsciente no tratamento das perturbações neuróticas, Jung (1946/1985, p. 19) dividiu esse desenvolvimento em mais ou menos três estágios principais: a sugestão, o método catártico e, finalmente, o método psicanalítico. Inicialmente, a idéia era reprimir os sintomas, a partir de uma postura firme e decidida do terapeuta quanto à irracionalidade e absurdo contidos em tais manifestações sintomáticas. Essa forma incipiente e até mesmo ingênua de tratamento baseava-se quase exclusivamente na sugestão:
Olhando mais de perto, o que naquele tempo se entendia por psicoterapia, era uma espécie de conselho enérgico ou benevolente paternal [...] forma de convencer o doente de que o sintoma “era apenas psíquico” e, portanto, não passava de imaginação doentia.
Posteriormente, na obra Estudos sobre a Histeria, Freud e Breuer (1893) reconheceram a importância de se adentrar nas origens dos sintomas, vendo-os não mais como mero resultado da imaginação neurótica, mas como a expressão de traumas psicológicos não acessíveis à consciência. Essa concepção faria emergir o chamado método catártico, enquanto alternativa à sugestão como procedimento terapêutico. Desta vez, o que se buscava era trazer à tona os incidentes traumáticos, visando à ab-reação das emoções causadoras da sintomatologia neurótica (FREUD, 1914/1996; LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).

Todavia, a partir de A Interpretação dos Sonhos, Freud (1900) não tardou muito em perceber algo mais nos traumas de seus pacientes, tendo verificado que o simples processo de ab-reação não serviria, por si só, como forma de eliminar a neurose. Foi a partir desse reconhecimento que ele aprofundara o estudo do inconsciente, formulando sua teoria psicanalítica. Freud passaria a se utilizar da associação livre e do método interpretativo, recorrendo aos sonhos e fantasias dos pacientes como material de análise. Suas idéias controversas e um tanto revolucionárias para a época, geraram as mais diversas reações por parte do público e de seus seguidores, propiciando o surgimento de várias teorias dissidentes (GARCIA-ROZA, 1984; LAPLANCHE; PONTALIS 2001; WOLLHEIN, 1971).

O abandono do método hipnótico por parte de Freud, ainda hoje criticado por muitos, foi o que abriu, no entanto, toda uma série de possibilidades não imaginadas antes, tendo como ponto de partida dois conceitos basilares: o de repressão – ou defesa, na qual o paciente se recusa a entrar em contato com os conteúdos inconscientes, barrando sua entrada na consciência e movendo-os de volta para o inconsciente – e o de transferência, em que se observa a interferência de conteúdos inconscientes na relação entre o paciente e o analista. Segundo Freud (1914/1996, p. 26):
A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico sem recorrer a hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho da análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose. [...] Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes no passado: a transferência e a resistência.
Consequentemente, ao remontar as origens dos sintomas da neurose, Freud chegaria aos problemas da alma infantil até atingir a questão da sexualidade, elementos esses que irão compor o colorido da teoria psicanalítica sobre o inconsciente, mesmo no final da obra de Freud, quando os conceitos de pulsão de vida e de morte são incorporados no quadro geral.

A 1º TÓPICA FREUDIANA

O conceito de inconsciente na Psicanálise não representa uma idéia isolada. Ele integra uma concepção mais ampla a respeito da estrutura e desenvolvimento da personalidade. Por sua vez, o conceito psicanalítico de personalidade atravessara três grandes momentos ao longo da obra de Freud: 1) o da personalidade como estrutura resultante de processos exclusivamente fisiológicos / neurológicos; 2) o da personalidade vista como aparelho psíquico – também chamada de 1° tópica freudiana – e 3) o da personalidade como uma estrutura dinâmica que engloba os elementos da 1° tópica, adicionando-lhes as instâncias do Id, Ego e Superego – modelo este denominado de 2° tópica (REIS, 1984).

Ao escrever a obra Projeto para uma Psicologia Científica, Freud (1950[1895]/1996) pretendia, inicialmente, reduzir as explicações acerca do funcionamento mental aos processos e modificações fisiológicas, fisicamente mensuráveis. Seu intuito era o de fazer a Psicologia entrar para o rol das ciências naturais. Contudo, essa proposta inicial acabou por ver-se frustrada diante das informações mais ricas e abrangentes que a análise da vida psíquica originara por si só. Com a Interpretação dos sonhos, Freud (1900/1996) reconstrói inteiramente sua Psicologia neurológica, propondo em seu lugar uma descrição metafórica da mente como uma espécie de aparelho o qual seguiria determinadas leis hipotéticas. É este segundo modelo, o da 1° tópica, que analisaremos num primeiro momento.

A conceituação da personalidade e suas funções como um aparelho psíquico foi designada por Freud pelo nome de Metapsicologia. A análise metapsicológica envolveria três diferentes âmbitos:
a) Dinâmico = ligado às relações de causa e efeito entre os processos ou atos psíquicos ou, em outras palavras, o conjunto das leis que regem as relações entre os diferentes conteúdos psíquicos;
b) Topográfico = ou a idéia de que tais processos ocupariam uma espécie de lugar ou região hipotética na estrutura total da mente, sendo esta caracterizada por sistemas de funcionamento específico;
c) Econômico = relacionado ao valor funcional dos atos ou processos psíquicos, concepção esta associada a uma compreensão energética do psiquismo, ou a variados graus de intensidade dos atos psíquicos. É aqui que o conceito de libido – ou energia psíquica e sexual – desempenhará papel fundamental (FREUD, 1915/1996b).
Esmiuçando melhor a dimensão topográfica da 1° tópica freudiana, faz-se necessário compreender que, nesse modelo, as idéias de Freud já não têm relação com a explicação fisiológica da teoria inicial; os lugares ou regiões a que se refere o autor possuiriam aqui um caráter bem mais abrangente. Segundo Freud (1915/1996b, p. 179): “Nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam situadas no corpo.”

Nesse sentido, os processos mentais foram divididos em três sistemas básicos: o inconsciente (Ics), o consciente (Cs) e o pré-consciente (Pcs). O sistema consciente – também chamado de Percepção-Consciente (Pcpt-Cs) – refere-se ao conjunto de relações mentais estabelecidas com o meio externo, visando à adaptação e relacionamento com o mundo, instância essa receptora tanto das estimulações ambientais como das estimulações internas. O pré-consciente – enquanto uma instância crítica que submete os conteúdos inconscientes a uma prévia reflexão ou censura – impediria a irrupção de conteúdos indesejáveis ou incompatíveis com o caráter consciente, servindo como um mecanismo de proteção aos valores do indivíduo. Ao ato de barrar ou impedir a emergência de conteúdos inconscientes, devolvendo-os, por assim dizer, ao inconsciente, Freud (1915/1996b) dera o nome de repressão.

O pré-consciente envolveria ainda todos aqueles conteúdos que possuem algum potencial para tornarem-se conscientes, mas que ainda se encontram no limiar entre o sistema inconsciente e consciente. A censura – isto é, o teste mental por meio do qual um ato psíquco ou representação proveniente do inconsciente é reprimida, retornando ao sistema de origem – exerceria sua função exatamente no ponto de transição do inconsciente para o consciente, ou seja, no sistema pré-consciente.

No modelo freudiano da psique, o inconsciente desempenha função primordial, visto que os seus conteúdos determinam, em grande parte, a extensão do funcionamento cabível às outras instâncias. Para Freud (1915/1996b) o inconsciente não serve apenas de depósito aos conteúdos previamente rejeitados, pois não se constitui exclusivamente pelo reprimido. Trata-se de uma instância complexa e, em muitos aspectos, desconhecida, a qual revelaria a origem de muitos de nossos comportamentos individuais sem justificação aparente. Para o autor, o conceito de inconsciente seria uma suposição legítima e necessária, decorrente da observação dos próprios fenômenos compilados ao longo da história da psicanálise – hipnose, transferência, etc.

Um dos grandes desafios a serem enfrentados logo de início, foi o fato de que o inconsciente não pode ser conhecido diretamente, já que não se refere a um dado inequívoco e evidente da experiência mental dos indivíduos. O inconsciente só é apreendido mediante suas manifestações indiretas no sistema consciente, por meio de lapsos, atos falhos, sintomas, fantasias, sonhos, etc. Tais manifestações adviriam do bloqueio pré-consciente de excitações internas que funcionam como representantes psíquicos dos impulsos – ou instintos. Freud (1915/1996a) define o instinto como um estímulo mental interno, uma disposição hereditária que exerce força constante sobre o sistema consciente, em busca da satisfação de determinadas finalidades – fome, por exemplo.

O instinto tem como origem a energia somática, advinda da região do corpo onde nasce a excitação. Desse modo, há uma infinidade de instintos todos eles proporcionais a reações físicas específicas – sexualidade, agressividade, alimentação, etc. Pode-se dizer que a dinâmica instintual é basicamente a do prazer-desprazer: diminuição de sentimentos desagradáveis originados pela estimulação interna, com a conseqüente emergência de sentimentos agradáveis decorrentes da diminuição dessa excitação. Tal concepção foi mais tarde retomada e ampliada em sua obra Além do Princípio do Prazer, com a incorporação dos conceitos de pulsão de vida e de morte (FREUD, 1920/1916).

Nesse primeiro momento de sua teoria, Freud (1915/1996a) dividirá os instintos em duas grandes classes: os instintos do ego – ou autopreservativos – e os sexuais, ambos de igual importância na vida psíquica. As exigências do meio social tendem a limitar o campo de ação disponível para esses instintos, e a repressão dos mesmos constitui uma tarefa cultural árdua, que nem sempre incorre em sucesso. A neurose seria, em outros termos, uma tentativa mal sucedida de se obter a reconciliação entre exigências tão díspares. Nesta primeira fase, pode-se resumir todo o esforço terapêutico da psicanálise em tornar consciente o inconsciente, não só no que tange às idéias reprimidas, mas aos afetos que lhe são associados (REIS, 1984). O inconsciente não guardaria os instintos humanos em sua forma original, mas representações desses instintos – as chamadas pulsões – as quais, na maior parte das vezes, não coadunam com as exigências da civilização e por isso são recalcadas.

Para Freud (1915/1996b, p. 182), os instintos seriam dessa maneira, os únicos elementos da psique a não comportarem a antítese consciente-inconsciente:
Um instinto nunca pode tornar-se objeto da consciência – só a idéia que o representa pode. Além disso, mesmo no inconsciente, um instinto não pode ser representado de outra forma a não ser por uma idéia. Se o instinto não se prendeu a uma idéia ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ele. Não obstante, quando falamos de um impulso instintual inconsciente ou de um impulso instintual reprimido, a imprecisão da fraseologia é inofensiva. Podemos apenas referir-nos a um impulso instintual cuja representação ideacional é inconsciente, pois nada mais entra em consideração.
Embora não seja possível acessar diretamente os conteúdos inconscientes, pode-se compreender muito a respeito dos mesmos por intermédio de suas manifestações indiretas. Com isso, Freud (1915/1996b) chega à conclusão de que o inconsciente é um território ativo, o qual possui leis e princípios que lhe são próprios e que diferem bastante dos padrões que norteiam o sistema pré-consciente. Pode-se abordá-lo a partir de dois aspectos principais:

a) Seus conteúdos, os quais incluem:
- registros mnêmicos ou idéias, para as quais não é direcionado nenhum investimento energético consciente, podendo ser descritas como originárias de impulsos carregados de desejo, cuja satisfação livre e direta é recusada pelo sistema pré-consciente;
- as chamadas protofantasias, ou formações herdadas resultantes da precipitação psíquica, no inconsciente, de eventos e experiências cuja ocorrência remonta aos primórdios da humanidade. Tais vestígios arcaicos de fantasia seriam passados de geração em geração, constituindo uma herança universal. Reis (1984) chama a atenção para a enorme semelhança entre o conceito de protofantasia de Freud e os arquétipos junguianos, lembrando-se, todavia, que Freud não viria a desenvolver e expandir esse conceito do mesmo modo que Jung;
b) Seu funcionamento peculiar. O sistema inconsciente nos propõe uma séria revisão daqueles conceitos que dirigem as atividades conscientes e, de certo modo, revelam-nos uma concepção evolutiva da mente e da personalidade. Os sistemas pré-consciente e consciente seriam o resultado de desenvolvimentos posteriores da psique, enquanto o inconsciente estaria mais próximo de nossa natureza básica. Assim, aquilo que consideramos essencial à nossa relação com o mundo e mesmo com alguns dos processos internos, não se aplica ao inconsciente. Podemos resumir tais divergências como se segue:

- No inconsciente não há contradição = os representantes instintuais que constituem o núcleo do inconsciente, existem lado a lado sem influenciarem-se mutuamente. Nenhum impulso cancela ou reduz o outro, mesmo quando suas finalidades são incompatíveis, pois há uma tendência para sua unificação numa finalidade intermediária.

- No inconsciente não há dúvida nem negação = os representantes instintuais buscam unicamente a sua própria realização, condição essa jamais questionada em si mesma. Como veremos adiante, o inconsciente é regido pelo Princípio do Prazer, para o qual não há limites estabelecidos a priori, a não ser o próprio desejo de vivenciar afetos prazerosos. A negação, segundo Freud (1915/1996, p. 191) “é um substituto, em grau mais elevado, da repressão” e, portanto, não existe no inconsciente como condição pré-estabelecida, sendo, na verdade, muito mais uma imposição da consciência.

- O inconsciente é regido pelo processo psíquico primário = a forma como a energia psíquica flui ao longo do sistema inconsciente é livre, e as trocas energéticas bastante maleáveis, pois não há impedimentos, distinções, classificações, lógica, etc. que se apliquem a esses processos. A fantasia é uma característica primordial do inconsciente. Antes de se desenvolver o pensamento e as representações verbais propriamente ditas, a fantasia é quem ocupa lugar de destaque na vida mental. Na fantasia, qualquer tipo de relação mental é imaginável, daí o fato de ser admitida como processo primário, isto é, como função mais básica ou mais primitiva, característica dos sonhos, das psicoses e dos estágios iniciais e rudimentares da vida mental.

- O inconsciente é atemporal = os conteúdos inconscientes são praticamente “eternos”, visto não possuírem absolutamente qualquer referência ao tempo. Não são ordenados temporalmente e não se alteram com o passar do tempo. Um registro inconsciente de algo reprimido há muitos anos pode emergir novamente, tempos depois, de maneira bastante vívida.

- O inconsciente ignora a existência da realidade = os conteúdos inconscientes têm por finalidade apenas sua satisfação e a conseqüente obtenção de prazer. Não há qualquer representação do real no inconsciente, mas tão somente um universo fantasioso oriundo dos desejos instintuais. O Princípio da Realidade, inerente ao funcionamento pré-consciente e consciente, não anula a busca por prazer, mas condiciona esta última a normas e valores sociais. Já não se trata de abandonar definitivamente o prazer, mas em se propiciar recursos para que o prazer seja alcançado de modo socialmente aceitável, normatizado.
Quadro 1. Principais distinções entre os sistemas psíquicos (com ênfase para as características dos sistemas pré-consciente e consciente).
As idéias esposadas por Freud a respeito do inconsciente em sua primeira tópica não chegaram a sofrer considerável alteração, mas a elas foram incorporados outros conceitos que formarão a base da chamada 2° tópica, revolucionando sua teoria inicial.

Fonte: FERNANDES, Maria de Fátima.
O inconsciente na filosofia: uma revisão do conceito de não-consciente
na obra de Arthur Schopenhauer e suas relações com o
inconsciente freudiano. Maria de Fátima Fernandes. Guarulhos, 2008.
85 f. 31 cm.

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