segunda-feira, 21 de março de 2011

O inconsciente na psicoterapia (Parte Dois)

Sabe-se que no trajeto da criação dos métodos propostos por Sigmund Freud, alguns conceitos e técnicas foram abandonados e outros mantidos. O modelo inicial do aparelho psíquico, sustentado nas noções de inconsciente, pré-consciente e consciente, pode ser considerado um exemplo disso. Embora a divisão dos processos psíquicos nas três categorias citadas tenha se mantido, Freud (1923/1987) ampliara sua teoria inicial, ao incluir três novas instâncias. Quando foram criadas, ele nomeou-as de: isso, eu e super-eu, mais conhecidas como o id, o ego e o superego (essa última categorização, baseada na tradução inglesa das obras de Freud, tem sido criticada em revisões recentes que tomam por base o original alemão. Iremos mantê-la, no momento, apenas por ser a mais conhecida). Sem extinguir o modelo da 1° tópica, Freud conceberá que essas instâncias se distribuem ao longo do estado inconsciente, do estado pré-consciente e do estado consciente. O estado totalmente inconsciente é representado predominantemente pelo id, e os estados de ordem consciente e pré-consciente têm como seu representante direto o ego, já que o superego seria formado por aspectos tanto inconscientes como conscientes. Contudo, nesse mesmo trabalho – o Ego e o Id (1923) – Freud chegou a especular que o ego também teria sua contraparte inconsciente.

O ego poderia ser descrito aqui como “uma organização coerente de processos mentais”, associado à consciência, responsável pelo controle da motricidade, num nível fisiológico, e pelos processos de censura sobre os conteúdos dos sonhos, pela repressão e pela resistência frente ao reprimido. Sob tais aspectos, o ego relaciona-se fundamentalmente àquilo que inicialmente restringia-se aos sistemas pré-consciente e consciente. Em verdade, Freud considerará aqui o pré-consciente como núcleo do ego. É neste momento, contudo, que as relações entre os sistemas ou estados psíquicos descritos na 1° tópica, e as instâncias da 2° se tornam mais complexas, revelando aspectos antes não considerados ou abordados sob ponto de vista diverso. No que diz respeito ao aspecto inconsciente do ego, diz Freud (1923/1987, p. 30-31):
Ora, descobrimos durante a análise que, quando apresentamos certas tarefas ao paciente, ele entra em dificuldades; as suas associações falham quando deveriam estar-se aproximando do reprimido. Dizemos-lhe então que está tomado por uma resistência, mas ele se acha totalmente inadvertido do fato e, mesmo que adivinhe, por seus sentimentos desprazerosos, que uma resistência encontra-se em ação nele, não sabe o que é ou como descrevê-la. Entretanto, visto não haver dúvida de que essa resistência emana do seu ego e a este pertence, encontramo-nos numa situação imprevista. Deparamo-nos com algo no próprio ego que é totalmente inconsciente, que se comporta exatamente como o reprimido – isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente. Do ponto de vista da prática analítica, a conseqüência desta descoberta é que iremos parar em infindáveis obscuridades e dificuldades se nos ativermos a nossas formas habituais de expressão e tentarmos, por exemplo, derivar as neuroses de um conflito entre o consciente e o inconsciente. Teremos de substituir esta antítese por outra, extraída de nossa compreensão interna das condições estruturais da mente.
Assim, tais diferenciações acabaram exercendo modificações na prática terapêutica, ao ampliar a proposta inicial de tornar consciente o inconsciente, para uma perspectiva mais dinâmica, em que se trabalha a relação estabelecida entre as três instâncias. O inconsciente é assimilado quase inteiramente à noção de Id. Todas as principais características do inconsciente, detalhadas na primeira tópica, reaparecem aqui na instância do Id, termo que se refere à forma latina do pronome neutro “es”, que, em alemão, significa “isto”. Na segunda tópica, o id é visto como a parte mais antiga do aparelho psíquico, que contém tudo o que é herdado e que já se acha presente no nascimento – acima de tudo, os instintos. O Id é o responsável pelo princípio do prazer, e sua tarefa é a de tornar possível a satisfação imediata das necessidades e impulsos plenos de desejos, que são essencialmente de origem sexual. Assim, pode-se dizer que o Id envolve os conteúdos reprimidos em sua definição, mas não está limitado por estes, revelando-se uma instância bem mais abrangente (FREUD, 1940[1938]/1978).

A escolha do termo “isto” diz respeito à impessoalidade do Id. Ele é enxergado pelo ego como algo estranho, desconhecido, uma ‘coisa’ à parte. O ego, no entanto, estabelece com ele relações constantes, podendo ser visto como sua superfície: “O ego não se acha nitidamente separado do Id; sua parte inferior [pré-consciente] funde-se com ele” (FREUD, 1923/1987, p.38). Em verdade, o ego teria surgido inicialmente de uma diferenciação do Id, como resultado da influência direta do mundo externo sobre o sistema Percpeção-Consciente. O ego é, de fato, um ego corporal, que emerge quase como uma projeção psíquica da superfície do corpo, formado a partir das próprias sensações corporais. E da mesma forma que o Id procura intervir sobre o ego com o objetivo de satisfazer o princípio de prazer, o ego tenta aplicar a influência do ambiente externo e da realidade sobre o Id, no intuito de restringir sua ação, ao substituí-la pelo princípio da realidade. “Para o ego, a percepção desempenha o papel que no Id cabe ao instinto. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso-comum, em contraste com o Id, que contém as paixões” (FREUD, 1923/ 1987, p. 39).

A segunda tópica não se esgota, entretanto, com as diferenciações entre ego e Id. Freud (1923/1987) nos fala ainda a respeito de uma variação do ego, que constituiria a terceira instância da segunda tópica: o superego ou ideal do ego. Para compreender melhor o que seja essa instância, precisamos recorrer aos conceitos de identificação e complexo de édipo. Segundo Freud (1921/1976, p. 55) a identificação pode ser definida “como a mais remota [mais primitiva e original] expressão de um laço emocional com outra pessoa”. Nela, o indivíduo esforça-se por assumir as características do objeto que lhe serve de modelo, moldando seu próprio ego segundo o aspecto daquele a quem se dirige a identificação. Esse processo é bem diferente de uma relação objetal verdadeira, na qual o indivíduo reconhece o outro como alguém distinto em relação a si próprio, baseando seu relacionamento com ele nessa distinção. Na relação de objeto libidinal, há um interesse real pela outra pessoa, sendo a libido dirigida para o objeto de amor, e não em direção ao próprio indivíduo. Além do mais, a identificação tende a ser um processo parcial, em que apenas uma ou poucas características da outra pessoa são internalizadas pelo ego, ocasionando assim um relacionamento empobrecido, no qual esse outro jamais é considerado em sua inteireza. A identificação tende a constituir relações extremadas, em que o outro é visto, ou como inerentemente mal, ou como inerentemente bom, não se admitindo a ambivalência do objeto de amor.


Todavia, a identificação – enquanto antecessora da relação objetal – prepara o caminho para um laço emocional efetivo. A qualidade comum a duas pessoas, elemento que as une na identificação, pode tornar-se assim o sucedâneo para uma relação de amor efetiva. É nesse ponto que chegamos à questão do complexo de édipo, e de como tal complexo terá conseqüências significativas na formação do superego. O complexo de édipo está ligado à maneira como a Psicanálise entende a sexualidade infantil e a sexualidade como um todo, o que abordaremos melhor no tópico sobre o desenvolvimento psicossexual. Por ora, basta entendermos, de acordo com Freud (1905/1996) e (1923/1987) que:

- A criança estabelece inicialmente com sua mãe uma relação de dependência física e emocional, em que necessita desta última para sua gratificação e conforto. No caso do menino, a relação que este possui com seu pai, nesse primeiro momento, é de identificação;

- Por volta dos três a cinco anos de idade, o interesse sexual que o menino possui pela mãe intensifica-se, tornando a relação inicial de identificação com o pai uma relação de hostilidade e ciúme, em que se compete pelo amor da mãe. O pai é agora um obstáculo a ser enfrentado. O conflito decorre da ambivalência dessa relação, já que apesar de haver se identificado até então com seu pai, o menino reconhece agora nele um impedimento à realização de seus desejos;

- A dissolução do complexo de édipo é alcançada quando o menino consegue finalmente dirigir seu interesse sexual e afetivo a outros objetos que não sua própria mãe, e incorpora em sua conduta, aspectos masculinos provenientes da identificação com seu pai. Freud denomina tal reconhecimento de complexo de castração, em que a criança percebe que não poderá realizar seus desejos da maneira como esperava, diminuindo com isso sua onipotência e seu narcisismo. No caso da menina, dá-se o inverso, sendo que a relação hostil perante a mãe e o amor direcionado ao pai são substituídos pela identificação com a mãe e sua feminilidade, e com a possibilidade de se amar outras pessoas do sexo oposto que não o próprio pai.

- É justamente aqui que se inicia a formação do superego. Com o declínio do complexo de édipo, ocorre uma interiorização da imagem idealizada dos pais. Ao imitar o pai, o menino introjeta aos poucos a imagem dele em seu ego, procedimento esse que acarreta a diferenciação permanente de uma parte do ego infantil, a qual irá representar, a partir desse momento, o ideal do ego ou superego.

- Num segundo instante, a imagem idealizada dos pais transforma-se em imagem ideal de si mesmo, base de todo ideal humano. Por sua vez, a função paterna transmuta-se, no interior do ego, em uma instância voltada a exercer as mesmas atividades de punição, repreensão e consciência moral desempenhadas inicialmente pelos pais da criança. O superego pode ser definido assim, como o conjunto de valores morais e sociais internalizados pela criança a partir da relação idealizada com seus pais. A esse respeito, Freud (1923/1987, p. 47) elucida que:
O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa [...] que se manifesta sob a forma de um imperativo categórico.
Nesse sentido, o conceito de superego revela-se bem mais abrangente que o de censura pré-consciente, abarcando toda a questão da moralidade e da lei internalizadas pelo indivíduo. Na verdade, Freud negará a idéia de que os valores morais do ser humano tenham um significado supra-pessoal ou transcendente. A lei internalizada pelo indivíduo seria apenas um reflexo da lei posta em ação primeiramente pelo pai, e num segundo momento, por outras autoridades que se apresentariam ao longo de nossa história de vida.

À medida que uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego, e continuam, sob a forma de consciência (conscience), a exercer a censura moral. A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal de ego (FREUD, 1923/1987, p. 49).

A questão concernente ao aspecto inconsciente do superego demandaria aqui uma ampla discussão que simplesmente não poderíamos abarcar nos limites deste trabalho. Em sua obra Totem e Tabu, Freud (1913/1996) oferece uma descrição mais completa, em que sugere que a religião, a moralidade e o senso social, foram adquiridos filogeneticamente a partir do complexo paterno vivenciado em meio à horda primitiva, o qual é reproduzido em cada indivíduo como parte inconsciente de sua constituição super-egóica.

O mediador entre os impulsos e desejos do id e as cobranças do superego é o ego, que adentra o conflito entre as duas instâncias para controlar os impulsos advindos do id e para prestar contas ao superego quanto aos desejos e impulsos que ultrapassaram as barreiras entre o consciente e o inconsciente, sendo que este último exige sempre do ego medidas de controle, no caso, controle dos impulsos em favor dos valores morais idealizados. O superego apresenta-se como agência crítica que assume para si a lei e a censura, sendo a instância que determina ao indivíduo, não só o que ele pode ou não fazer e ser, mas também o que ele não pode ser ou fazer. Por conta isso, ele é também configurado como o princípio da moralidade – em contraste com o princípio do prazer, que caracterizaria o Id, e com o princípio da realidade, expressão do ego. O superego está destinado a levar o ego a reprimir os impulsos do id e fazer com que a frustração esteja presente na vida psíquica (REIS, 1984).

Ressaltando a importância do ego, chega-se às modificações terapêuticas instauradas pela segunda tópica. Caso a tarefa de conciliação do ego se torne muito rígida, havendo censura e repressão demasiada dos desejos do id, ou ao contrário, a dificuldade em aceitar a liberação condicionada de desejos instintivos, de forma a restabelecer a economia psíquica, atinge-se com isso um estado de ansiedade e tensão psíquicas. Além dessas duas instâncias, o ego também deve lidar com a realidade externa e as demandas do meio social. Logo, o ego é de um lado estimulado e de outro espremido, permanecendo em uma situação angustiante, geradora de neuroses. Uma pessoa cujo ego é bem estruturado consegue suportar melhor as frustrações da vida, seja quanto à impossibilidade de realizar muitos de seus desejos ou quanto à impossibilidade de ser, a todo o momento, a pessoa virtuosa e perfeita que gostaria. A análise, portanto, já não tem mais como objetivo exclusivo tornar consciente o inconsciente, mas sim fortalecer o ego. Como dirá Anna Freud (1983, p. 4):
Desde o começo, a análise, como método terapêutico, preocupou-se com o ego e suas aberrações: a investigação do id e de seus processos de funcionamento sempre foi um meio apenas, para se alcançar um fim. E o fim era invariavelmente o mesmo: a correção dessas anormalidades e a recuperação do ego em sua integridade.
Contudo, o ego não é a função mais importante do psiquismo e nem sempre tem o controle das outras instâncias; o ego é a representação de uma pequena parte da vida psíquica. A vida consciente normal é aquela na qual o ego resiste tanto às demandas do id, quanto às exigências do superego, proporcionando certa homeostase à economia psíquica, lembrando que quando este processo se depara com a fragilidade egóica, são instaladas na vida psíquica do indivíduo as neuroses. Apesar de todo este desempenho que as instâncias psíquicas apresentam, nem sempre há a possibilidade do inconsciente se manifestar por meio do consciente; daí que, nos sonhos, o inconsciente busca um caminho alternativo que se pronuncia por intermédio das imagens, substituindo os conteúdos barrados pela consciência. O inconsciente transmite sua mensagem tomando como veículo o imaginário psíquico, e aproveita para emitir seus sinais driblando e maquiando os resultados que aparecem, muitas vezes em forma de sonhos, lapsos, atos falhos, sintomas e desejos substitutos aos objetos reais. É assim que a comunicação é representada pelo inconsciente. Nesse sentido, Freud (1923/1987) amplia a definição inicial de inconsciente ao estipular certa distinção entre o que seria o inconsciente em seu aspecto dinâmico, e o inconsciente em seu aspecto descritivo. O fator dinâmico envolveria o conjunto das manifestações inconscientes perceptíveis pela consciência – em outras palavras, os fenômenos inconscientes – enquanto o aspecto descritivo designa o inconsciente apenas como instância psíquica, ‘local’ em que residem os conteúdos reprimidos e os representantes instintuais, tal qual na primeira tópica.

Para lidar com os impulsos provenientes do Id, o ego se utiliza de diferentes mecanismos defensivos. Dentre tais mecanismos, o mais saudável pode ser considerado o recurso da sublimação, como forma de se aproveitar da energia emanada do inconsciente, para gerar atividades socialmente aceitas. É como se na sublimação, a libido sofresse um deslocamento cuja finalidade não implica a satisfação sexual em si mesma, mas um reaproveitamento produtivo da energia originalmente advinda das funções somáticas. A sublimação permite ao sujeito viver integrado à vida cultural e social, porque permite a substituição do desejo inconsciente que não pode ser satisfeito naquele momento por objetos compatíveis a esse desejo, e assim, de forma indireta é possível realizá-lo, trazendo a satisfação necessária ao indivíduo sem que o mesmo precise sentir angústia ou frustração pela não satisfação da libido (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).
Fonte: FERNANDES, Maria de Fátima.
O inconsciente na filosofia: uma revisão do conceito de nãoconsciente
na obra de Arthur Schopenhauer e suas relações com o
inconsciente freudiano. Maria de Fátima Fernandes. Guarulhos, 2008.
85 f. 31 cm.

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